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com a suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann

sebastian bach, a suite que ele nunca tocará neste teatro, porque é

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apenas um violoncelista de orquestra, ainda que principal do seu naipe,

não um daqueles famosos concertistas que percorrem o mundo inteiro

tocando e dando entrevistas, recebendo flores, aplausos, homenagens e

condecorações, muita sorte tem por uma vez ou outra lhe saírem uns

quantos compassos para tocar a solo, algum compositor generoso que

se lembrou daquele lado da orquestra onde poucas cousas costumam

passar-se fora da rotina. Quando o ensaio terminar guardará o

violoncelo na caixa e voltará para casa de táxi, daqueles que têm um

porta-bagagem grande, e é possível que esta noite, depois de jantar,

abra a suite de bach sobre o atril, respire fundo e roce com o arco as

cordas para que a primeira nota nascida o venha consolar das

incorrigíveis banalidades do mundo e a segunda as faça esquecer se

pode, o solo terminou já, o tutti da orquestra cobriu o último eco do

violoncelo, e o xamã, com um gesto imperioso da batuta, voltou ao seu

papel de invocador e guia dos espíritos sonoros. A morte está orgulhosa

do bem que o seu violoncelista tocou. Como se se tratasse de uma

pessoa da família, a mãe, a irmã, uma noiva, esposa não, porque este

homem nunca se casou.

Durante os três dias seguintes, excepto o tempo necessário para

correr à sala subterrânea, escrever as cartas a toda a pressa e enviá-las

ao correio, a morte foi, mais do que a sombra, o próprio ar que o músico

respirava. A sombra tem um grave defeito, perde-se-lhe o sítio, não se

dá por ela assim que lhe falta uma fonte luminosa. A morte viajou

sentada ao lado dele no táxi que o levou a casa, entrou quando ele

entrou, contemplou com benevolência as loucas efusões do cão à

chegada do amo, e depois, tal como faria uma pessoa convidada a

passar ali uma temporada, instalou-se.

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Para quem não precisa de se mover, é fácil, tanto lhe dá estar sentado

no chão como empoleirado na cimeira de um armário. O ensaio da

orquestra tinha acabado tarde, daqui a pouco será noite.

O violoncelista deu de comer ao cão, depois preparou o seu próprio

jantar com o conteúdo de duas latas que abriu, aqueceu o que era para

aquecer, depois estendeu uma toalha sobre a mesa da cozinha, pôs os

talheres e o guardanapo, deitou vinho num copo e, sem pressa, como se

pensasse noutra cousa, meteu a primeira garfada de comida na boca. o

cão sentou-se ao lado, algum resto que o dono deixe ficar no prato e

possa ser-lhe dado à mão será a sua sobremesa. A morte olha o

violoncelista. Por princípio, não distingue entre gente feia e gente

bonita, se calhar porque, não conhecendo de si mesma senão a caveira

que é, tem a irresistível tendência de fazer aparecer a nossa desenhada

por baixo da cara que nos serve de mostruário. No fundo, no fundo,

manda a verdade que se diga, aos olhos da morte todos somos da

mesma maneira feios, inclusive no tempo em que havíamos sido

rainhas de beleza ou reis do que masculinamente lhe equivalha.

Aprecia-lhe os dedos fortes, calcula que as polpas da mão esquerda

devem ter-se tornado a pouco e pouco mais duras, talvez até levemente

calosas, a vida tem destas e doutras injustiças, veja-se este caso da mão

esquerda, que tem à sua conta o trabalho mais pesado do violoncelo e

recebe do público muito menos aplausos que a mão direita. Terminado

o jantar, o músico lavou a louça, dobrou cuidadosamente pelos vincos a

toalha e o guardanapo, meteu-os numa gaveta do armário e antes de

sair da cozinha olhou em redor para ver se havia ficado alguma cousa

fora do seu lugar. o cão foi atrás dele para a sala de música, onde a

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morte os esperava. Ao contrário da suposição que havíamos feito no

teatro, o músico não tocou a suite de bach. um dia, em conversa com

alguns colegas da orquestra que em tom ligeiro falavam sobre a

possibilidade da composição de retratos musicais, retratos autênticos,

não tipos, como os de samuel goldenberg e schmuyle, de mussorgsky,

lembrou-se de dizer que o seu retrato, no caso de existir de facto em

música, não o encontrariam em nenhuma composição para violoncelo,

mas num brevíssimo estudo de chopin, opus vinte e cinco, número

nove, em sol bemol maior. Quiseram saber porquê e ele respondeu que

não conseguia ver-se a si mesmo em nada mais que tivesse sido escrito

numa pauta e que essa lhe parecia ser a melhor das razões. E que em

cinquenta e oito segundos chopin havia dito tudo quanto se poderia

dizer a respeito de uma pessoa a quem não podia ter conhecido.

Durante alguns dias, como amável divertimento, os mais graciosos

chamaram-lhe cinquenta e oito segundos, mas a alcunha era por de

mais comprida para perdurar, e também porque nenhum diálogo é

possível manter com alguém que tinha decidido demorar cinquenta e

oito segundos a responder ao que lhe perguntavam. o violoncelista

acabaria por ganhar a amigável contenda. Como se tivesse percebido a

presença de um terceiro em sua casa, a quem, por motivos não

explicados, deveria falar de si mesmo, e para não ter de fazer o longo

discurso que até a vida mais simples necessita para dizer de si mesma

algo que valha a pena, o violoncelista sentou-se ao piano, e, após uma

breve pausa para que a assistência se acomodasse, atacou a composição.

Deitado ao lado do atril e já meio adormecido, o cão não pareceu dar

importância à tempestade sonora que se havia desencadeado por cima

da sua cabeça, quer fosse por a ter ouvido outras vezes, quer fosse

porque ela não acrescentava nada ao que conhecia do dono. A morte,

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porém, que por dever de ofício tantas outras músicas havia escutado,

com particular relevância para a marcha fúnebre do mesmo chopin ou

para o adagio assai da terceira sinfonia de beethoven, teve pela primeira

vez na sua longuíssima vida a percepção do que poderá chegar a ser

uma perfeita convizinhança entre o que se diz e o modo por que se está

dizendo. Importava-lhe pouco que aquele fosse o retrato musical do

violoncelista, o mais provável é que as alegadas parecenças, tanto as

efectivas como as imaginadas, as tivesse ele fabricado na sua cabeça, o

que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naqueles

cinquenta e oito segundos de música uma transposição rítmica e

melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária,

pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também

por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão

deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavel-

mente, alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer. o violoncelista

havia caído num dos pecados humanos que menos se perdoa, o da

presunção, quando imaginara ver a sua própria e exclusiva figura num

retrato em que afinal se encontravam todos, a qual presunção, em todo

o caso, se repararmos bem, se não nos deixarmos ficar à superfície das

cousas, igualmente poderia ser interpretada como uma manifestação do

seu radical oposto, ou seja, a humildade, uma vez que, sendo aquele

retrato de todos, também eu teria de estar retratado nele. A morte