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hesita, não acaba de decidir-se pela presunção ou pela humildade, e,

para desempatar, para tirar-se de dúvidas, entretém-se agora a observar

o músico, esperando que a expressão da cara lhe revele o que está a

faltar, ou talvez as mãos, as mãos são dois livros abertos, não pelas

razões, supostas ou autênticas, da quiromancia, com as suas linhas do

coração e da vida, da vida, meus senhores, ouviram bem, da vida, mas

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porque falam quando se abrem ou se fecham, quando acariciam ou

golpeiam, quando enxugam uma lágrima ou disfarçam um sorriso,

quando se pousam sobre um ombro ou acenam um adeus, quando

trabalham, quando estão quietas, quando dormem, quando despertam,

e então a morte, terminada a observação, concluiu que não é verdade

que o antónimo da presunção seja a humildade, mesmo que o estejam

jurando a pés juntos todos os dicionários do mundo, coitados dos

dicionários, que têm de governar-se eles e governar-nos anos com as

palavras que existem, quando são tantas as que ainda faltam, por

exemplo, essa que iria ser o contrário activo da presunção, porém em

nenhum caso a rebaixada cabeça da humildade, essa palavra que vemos

claramente escrita na cara e nas mãos do violoncelista, mas que não é

capaz de dizer-nos como se chama.

Calhou ser domingo o dia seguinte. Estando o tempo de boa cara,

como sucede hoje, o violoncelista tem o costume de ir passar a manhã

num dos parques da cidade em companhia do cão e de um ou dois

livros. o animal nunca se afasta muito, mesmo quando o instinto o faz

andar de árvore em árvore a farejar as mijadas dos congéneres. Alça a

perna de vez em quando, mas por aí se fica no que à satisfação das suas

necessidades excretórias se refere. A outra, por assim dizer complemen-

tar, resolve-a disciplinadamente no quintal da casa onde mora, por isso

o violoncelista não tem de ir atrás dele recolhendo-lhe os excrementos

num saquinho de plástico com a ajuda da pazinha especialmente

desenhada para esse fim. Tratar-se-ia de um notável exemplo dos

resultados de uma boa educação canina se não se desse a circunstância

extraordinária de ter sido uma ideia do próprio animal, o qual é de

opinião de que um músico, um violoncelista, um artista que se esforça

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por chegar a tocar dignamente a suite número seis opus mil e doze em

ré maior de bach, é de opinião, dizíamos, que não está bem que um

músico, um violoncelista, um artista, tenha vindo ao mundo para

levantar do chão as cacas ainda fumegantes do seu cão ou de qualquer

outro. Não é próprio, bach, por exemplo, disse este um dia em conversa

com o dono, nunca o fez. o músico respondeu que desde então os

tempos mudaram muito, mas foi obrigado a reconhecer que bach, de

facto, nunca o havia feito. Embora seja apreciador da literatura em

geral, bastará olhar as prateleiras médias da sua biblioteca para o

comprovar, o músico tem uma predilecção especial pelos livros sobre

astronomia e ciências naturais ou da natureza, e hoje lembrou-se de

trazer um manual de entomologia. Por falta de preparação prévia não

espera aprender muito com ele, mas distrai-se lendo que na terra há

quase um milhão de espécies de insectos e que estes se dividem em

duas ordens, a dos pterigotos, que são providos de asas, e os

apterigotos, que não as têm, e que se classificam em ortópteros, como o

gafanhoto, blatóideos, como a barata, mantídeos, como o louva-a-deus,

nevrópteros, como a crisopa, odonatos, como a libélula, efemerópteros,

como o efémero, tricópteros, como o frigano, isópteros, como a térmita,

afanípteros, como a pulga, anopluros, como o piolho, malófagos, como

o piolhinho das aves, heterópteros, como o percevejo, homópteros,

como o pulgão, dípteros, como a mosca, himenópteros, como a vespa,

lepidópteros, como a caveira, coleópteros, como o escaravelho, e,

finalmente, tisanuros, como o peixe-de-prata. Conforme se pode ver na

imagem que vem no livro, a caveira é uma borboleta, e o seu nome

latino é acherontia atropos. É nocturna, ostenta na parte dorsal do tórax

um desenho semelhante a uma caveira humana, alcança doze centí-

metros de envergadura e é de coloração escura, com as asas posteriores

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amarelas e negras. E chamam-lhe atropos. isto é, morte. o músico não

sabe, e não poderia imaginá-lo nunca, que a morte olha, fascinada, por

cima do seu ombro, a fotografia a cores da borboleta. Fascinada e

também confundida.

Recordemos que a parca encarregada de tratar da passagem da vida

dos insectos à sua não-vida, ou seja, matá-los, é outra, não é esta, e que,

embora em muitos casos o modus operandi seja o mesmo para ambas,

as excepções também são numerosas, basta dizer que os insectos não

morrem por causas tão comuns na espécie humana como são, por

exemplo, a pneumonia, a tuberculose, o cancro, a síndroma da

imunodeficiência adquirida, vulgarmente conhecida por sida, os

acidentes de viação ou as afecções cardiovasculares. Até aqui, qualquer

pessoa entenderia. o que custa mais a perceber, o que está a confundir

esta morte que continua a olhar por cima do ombro do violoncelista é

que uma caveira humana, desenhada com extraordinária precisão,

tenha aparecido, não se sabe em que época da criação, no lombo peludo

de uma borboleta. É certo que no corpo humano também aparecem por

vezes umas borboletazitas, mas isso nunca passou de um artifício

elementar, são simples tatuagens, não vieram com a pessoa ao nascer.

Provavelmente, pensa a morte, houve um tempo em que todos os

seres vivos eram uma cousa só, mas depois, a pouco e pouco, com a

especialização, acharam-se divididos em cinco remos, a saber, as

móneras, os protistos, os fungos, as plantas e os animais, em cujo inte-

rior, aos remos nos referimos, infindas macrospecializações e microspe-

cializações se sucederam ao longo das eras, não sendo portanto nada de

estranhar que, em meio de tal confusão, de tal atropelo biológico,

algumas particularidades de uns tivessem aparecido repetidas noutros.

Isso explicaria, por exemplo, não só a inquietante presença de uma

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caveira branca no dorso desta borboleta acherontia atropos, que,

curiosamente, além da morte, tem no seu nome o nome de um rio do

inferno, como também as não menos inquietantes semelhanças da raiz

da mandragora com o corpo humano. Não sabe uma pessoa o que

pensar diante de tanta maravilha da natureza, diante de assombros tão

sublimes. Porém, os pensamentos da morte, que continua a olhar

fixamente por cima do ombro do violoncelista, tomaram já outro

caminho. Agora está triste porque compara o que haveria sido utilizar

as borboletas da caveira como mensageiras de morte em lugar daquelas

estúpidas cartas de cor violeta que ao princípio lhe tinham parecido a

mais genial das ideias. A uma borboleta destas nunca lhe ocorreria a

ideia de voltar para trás, leva marcada a sua obrigação nas costas, foi

para isso que nasceu. Além disso, o efeito espectacular seria totalmente

diferente, em lugar de um vulgar carteiro que nos vem entregar uma