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carta, veríamos doze centímetros de borboleta adejando sobre as nossas

cabeças, o anjo da escuridão exibindo as suas asas negras e amarelas, e

de repente, depois de rasar o chão e traçar o círculo de onde já não

sairemos, ascender verticalmente diante de nós e colocar a sua caveira

diante da nossa. É mais do que evidente que não regatearíamos

aplausos à acrobacia. Por aqui se vê como a morte que leva a seu cargo

os seres humanos ainda tem muito que aprender. Claro que, como bem

sabemos, as borboletas não se encontram sob a sua jurisdição. Nem elas,

nem todas as outras espécies animais, praticamente infinitas. Teria de

negociar um acordo com a colega do departamento zoológico, aquela

que tem à sua responsabilidade a administração daqueles produtos

naturais, pedir-lhe emprestadas umas quantas borboletas acherontia

atropos. embora o mais provável, lamentavelmente, tendo em conta a

abissal diferença de extensão dos respectivos territórios e das popu-

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lações correspondentes, seria responder-lhe a referida colega com um

soberbo, malcriado e peremptório não, para que aprendamos que a falta

de camaradagem não é uma palavra vã, até mesmo na gerência da

morte. Pense-se só naquele milhão de espécies de insectos de que falava

o manual de entomolonia elementar, imagine-se, se tal é possível, o

número de indivíduos existentes em cada uma, e digam-me cá se não se

encontrariam mais bichinhos desses na terra que de estrelas tem o céu,

ou o espaço sideral, se preferirmos dar um nome poético à convulsa

realidade do universo em que somos um fiozinho de merda a ponto de

se dissolver. A morte dos humanos, neste momento uma ridicularia de

sete mil milhões de homens e mulheres bastante mal distribuídos pelos

cinco continentes, é uma morte secundária, subalterna, ela própria tem

perfeita consciência do seu lugar na escala hierárquica de tânatos, como

teve a honradez de reconhecer na carta enviada ao jornal que lhe havia

escrito o nome com inicial maiúscula. No entanto, sendo a porta dos

sonhos tão fácil de abrir, tão ao jeito de qualquer que nem impostos nos

exigem pelo consumo, a morte, esta que já deixou de olhar por cima do

ombro do violoncelista, compraz-se a imaginar o que seria ter às suas

ordens um batalhão de borboletas alinhadas em cima da mesa, ela

fazendo a chamada uma a uma e dando as instruções, vais a tal lado,

procuras tal pessoa, pões-lhe diante a caveira e voltas aqui. Então o

músico julgaria que a sua borboleta acherontia atropos havia levantado

voo da página aberta, seria esse o seu último pensamento e a última

imagem que levaria agarrada à retina, nenhuma mulher gorda vestida

de preto a anunciar-lhe a morte, como se diz que viu marcel proust,

nenhum mastronço embrulhado num lençol branco, como afirmam os

moribundos de vista penetrante. uma borboleta, nada mais que o suave

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ruge-ruge das asas de seda de uma borboleta grande e escura com uma

pinta branca que parece uma caveira.

O violoncelista olhou o relógio e viu que eram mais do que horas de

almoço. o cão, que já levava dez minutos a pensar o mesmo, tinha-se

sentado ao lado do dono e, apoiando a cabeça no joelho dele, esperava

pacientemente que regressasse ao mundo.

Não longe dali havia um pequeno restaurante que fornecia

sanduíches e outras minudências alimentícias de natureza semelhante.

sempre que vinha a este parque pela manhã, o violoncelista era cliente e

não variava na encomenda que fazia. Duas sanduíches de atum com

maionese e um copo de vinho para si, uma sanduíche de carne mal

passada para o cão. se o tempo estava agradável, como hoje, sentavam-

se no chão, à sombra de uma árvore, e, enquanto comiam, conversavam.

o cão guardava sempre o melhor para o fim, começava por despachar as

fatias de pão e só depois é que se entregava aos prazeres da carne,

mastigando sem pressa, conscientemente, saboreando os sucos.

Distraído, o violoncelista comia como calhava, pensava na suite em ré

maior de bach, no prelúdio, uma certa passagem levada dos diabos em

que lhe acontecia deter-se algumas vezes, hesitar, duvidar, que é o pior

que pode suceder na vida a um músico. Depois de acabarem de comer,

estenderam-se um ao lado do outro, o violoncelista dormitou um

pouco, o cão já estava a dormir um minuto antes. Quando acordaram e

voltaram para casa, a morte foi com eles. Enquanto o cão corria ao

quintal para descarregar a tripa, o violoncelista pós a suite de bach no

atril, abriu-a na passagem escabrosa, um pianíssimo absolutamente

diabólico, e a implacável hesitação repetiu-se. A morte teve pena dele,

Coitado, o pior é que não vai ter tempo para conseguir, aliás, nunca o

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têm, mesmo os que chegaram perto sempre ficaram longe. Então, pela

primeira vez, a morte reparou que em toda a casa não havia um único

retrato de mulher, salvo de uma senhora de idade que tinha todo o ar

de ser a mãe e que estava acompanhada por um homem que devia ser o

pai.

Tenho um grande favor a pedir-te, disse a morte. Como sempre, a

gadanha não respondeu, o único sinal de ter ouvido foi um estremeci-

mento pouco mais que perceptível, uma expressão geral de desconcerto

físico, posto que jamais haviam saído daquela boca semelhantes

palavras, pedir um favor, e ainda por cima grande. Vou ter de estar fora

durante uma semana, continuou a morte, e necessito que durante esse

tempo me substituas no despacho das cartas, evidentemente não te

estou a pedir que as escrevas, apenas que as envies, só terás de emitir

uma espécie de ordem mental e fazer vibrar um poucochinho a tua

lâmina por dentro, assim como um sentimento, uma emoção, qualquer

cousa que mostre que estás viva, isso bastará para que as cartas sigam

para o seu destino. A gadanha manteve-se calada, mas o silêncio

equivalia a uma pergunta. É que não posso estar sempre a entrar e a sair

para tratar do correio, disse a morte, tenho de me concentrar totalmente

na resolução do problema do violoncelista, descobrir a maneira de lhe

entregar a maldita carta. A gadanha esperava. A morte prosseguiu, A

minha ideia é esta, escrevo de uma assentada todas as cartas referentes

à semana em que estarei ausente, procedimento que me permito a mim

mesma usar considerando o carácter excepcional da situação, e, tal

como já disse, tu só terás de as enviar, nem precisarás de sair de onde

estás, aí encostada à parede, repara que estou a ser simpática, peço-te

um favor de amiga quando poderia muito bem, sem contemplações,

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dar-te uma simples ordem, o facto de nos últimos tempos ter deixado

de me aproveitar de ti não significa que não continues ao meu serviço. o

silêncio resignado da gadanha confirmava que assim era. Então estamos

de acordo, concluiu a morte, dedicarei este dia a escrever as cartas,

calculo que venham a ser umas duas mil e quinhentas, imagina só,

tenho a certeza de que chegarei ao fim do trabalho com o pulso aberto,

deixo-tas arrumadas em cima da mesa, em grupos separados, da

esquerda para a direita, não te equivoques, da esquerda para a direita,

repara bem, desde aqui até aqui, arranjar-me-ias outra complicação dos

diabos se as pessoas recebessem fora de tempo as suas notificações,

quer para mais, quer para menos. Diz-se que quem cala, consente. A