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gadanha havia calado, portanto tinha consentido. Envolvida no seu

lençol, com o capuz atirado para trás a fim de desafogar a visão, a morte

sentou-se a trabalhar. Escreveu, escreveu, passaram as horas e ela a

escrever, e eram as cartas, e eram os sobrescritos, e era dobrá-las, e era

fechá-los, perguntar-se-á como o conseguia se não tem língua nem de

onde lhe venha a saliva, isso, meus caros senhores, foi nos felizes

tempos do artesanato, quando ainda vivíamos nas cavernas de uma

modernidade que mal começava a despontar, agora os sobrescritos são

dos chamados autocolantes, retira-se-lhes a tirinha de papel, e já está,

dos múltiplos empregos que a língua tinha, pode dizer-se que este

passou à história. A morte só não chegou ao fim com o pulso aberto

depois de tão grande esforço porque, em verdade, aberto já ela o tem

desde sempre. são modos de falar que se nos pegam à linguagem,

continuamos a usá-los mesmo depois de se terem desviado há muito do

sentido original, e não nos damos conta de que, por exemplo, no caso

desta nossa morte que por aqui tem andado em figura de esqueleto, o

pulso já lhe veio aberto de nascença, basta ver a radiografia. o gesto de

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despedida fez desaparecer no hiperespaço os duzentos e oitenta e tal

sobrescritos de hoje, porquanto será só a partir de amanhã que a

gadanha principiará a desempenhar as funções de expedidora postal

que acabavam de ser-lhe confiadas. sem pronunciar uma palavra, nem

adeus, nem até logo, a morte levantou-se da cadeira, dirigiu-se à única

porta existente na sala, aquela portazinha estreita a que tantas vezes nos

referimos sem a menor ideia de qual pudesse ser a sua serventia, abriu-

a, entrou e tornou a fechá-la atrás de si. A emoção fez com que a

gadanha experimentasse ao longo da lâmina, até ao bico, até à ponta

extrema, uma fortíssima vibração. Nunca, de memória de gadanha,

aquela porta havia sido utilizada.

As horas passaram, todas as que foram necessárias para que o sol

nascesse lá fora, não aqui nesta sala branca e fria, onde as pálidas

lâmpadas, sempre acesas, pareciam ter sido postas ali para espantar as

sombras a um morto que tivesse medo da escuridão. Ainda é cedo para

que a gadanha emita a ordem mental que fará desaparecer da sala o

segundo monte de cartas, poderá, portanto, dormir um pouco mais. Isto

é o que costumam dizer os insones que não pregaram olho em toda a

noite, mas que, pobres deles, julgam ser capazes de iludir o sono só

porque lhe pedem um pouco mais, apenas um pouco mais, eles a quem

nem um minuto de repouso lhes havia sido concedido. sozinha, durante

todas aquelas horas, a gadanha procurou uma explicação para o insólito

facto de a morte ter saído por uma porta cega que, desde o momento

em que a tinham colocado ali, parecia condenada para o fim dos

tempos. Por fim desistiu de dar voltas à cabeça, mais tarde ou mais cedo

terá de acabar por saber o que está a passar-se ali atrás, pois é

praticamente impossível que haja segredos entre a morte e a gadanha

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como também os não há entre a foice e a mão que a empunha. Não teve

de esperar muito. Meia hora teria passado num relógio quando a porta

se abriu e uma mulher apareceu no limiar. A gadanha tinha ouvido

dizer que isto podia acontecer, transformar-se a morte em um ser

humano, de preferência mulher por essa cousa dos géneros, mas

pensava que se tratava de uma historieta, de um mito, de uma lenda

como tantas e tantas outras, por exemplo, a fénix renascida das suas

próprias cinzas, o homem da lua carregando com um molho de lenha às

costas por ter trabalhado em dia santo, o barão de münchhausen que,

puxando pelos seus próprios cabelos, se salvou de morrer afogado num

pântano e ao cavalo que montava, o drácula da transilvânia que não

morre por mais que o matem, a não ser que lhe cravem uma estaca no

coração, e mesmo assim não falta quem duvide, a famosa pedra, na

antiga irlanda, que gritava quando o rei verdadeiro lhe tocava, a fonte

do epiro que apagava os archotes acesos e inflamava os apagados, as

mulheres que deixavam escorrer o sangue da menstruação pelos

campos cultivados para aumentar a fertilidade da sementeira, as

formigas do tamanho de cães, os Cães do tamanho de formigas, a

ressurreição no terceiro dia porque não tinha podido ser no segundo.

Estás muito bonita, comentou a gadanha, e era verdade, a morte estava

muito bonita e era jovem, teria trinta e seis ou trinta e sete anos Como

haviam calculado os antropólogos, Falaste, finalmente, exclamou a

morte, Pareceu-me haver um bom motivo, não é todos os dias que se vê

a morte transformada num exemplar da espécie de quem é inimiga,

Quer dizer que não foi por me ter achado bonita, Também, também,

mas igualmente teria falado se me tivesses aparecido na figura de uma

mulher gorda vestida de preto como a monsieur marcel proust, Não sou

gorda nem estou vestida de preto, e tu não tens nenhuma ideia de quem

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foi marcel proust, Por razões óbvias, as gadanhas, tanto esta de ceifar

gente como as outras, vulgares, de ceifar erva, nunca puderam aprender

aler, mas todas fomos dotadas de boa memória, elas da seiva, eu do

sangue, ouvi dizer algumas vezes por aí o nome de proust e liguei os

factos, foi um grande escritor, um dos maiores que jamais existiram, e o

verbete dele deverá estar nos antigos arquivos, sim, mas não nos meus,

não fui eu a morte que o matou, Não era então deste país o tal monsieur

marcel proust, perguntou a gadanha, Não, era de um outro, de um que

se chama frança, respondeu a morte, e notava-se um certo tom de

tristeza nas suas palavras, Que te console do desgosto de não teres sido

tu a matá-lo o bonita que te vejo, benza-te deus, ajudou a gadanha,

sempre te considerei uma amiga, mas o meu desgosto não vem de não o

ter matado eu, Então, Não saberia explicar. A gadanha olhou a morte

com estranheza e achou preferível mudar de assunto, Aonde foste

encontrar o que levas posto, perguntou, Há muito por onde escolher

atrás daquela porta, aquilo é como um armazém, como um enorme

guarda-roupa de teatro, são centenas de armários, centenas de

manequins, milhares de cabides, Levas-me lá, pediu a gadanha, seria

inútil, não entendes nada de modas nem de estilos, À simples vista não

me parece que tu entendas muito mais, não creio que as diferentes

partes do que vestes joguem bem umas com outras, Como nunca sais

desta sala, ignoras o que se usa nos dias de hoje, Pois dir-te-ei que essa

blusa se parece muito a outras que recordo de quando levava uma vida

activa, As modas são rotativas, vão e voltam, voltam e vão, se eu te

contasse o que vejo por essas ruas, Acredito sem que tenhas de mo

dizer, Não achas que a blusa acerta bem com a cor das calças e dos

sapatos, Creio que sim, concedeu a gadanha, E com este gorro que levo

na cabeça, Também, E com este casaco de pele, Também, E com esta

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bolsa ao ombro, Não digo que não, E com estes brincos nas orelhas,

Rendo-me, Estou irresistível, confessa, Depende do tipo de homem a

quem queiras seduzir, Em todo o caso parece-te mesmo que vou bonita,