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Fui eu quem o disse em primeiro lugar, sendo assim, adeus, estarei de

regresso no domingo, o mais tardar na segunda-feira, não te esqueças

de despachar o correio de cada dia, suponho que não será demasiado

trabalho para quem passa o seu tempo encostado à parede, Levas a

carta, perguntou a gadanha, que decidira não reagir à ironia, Levo, vai

aqui dentro, respondeu a morte, tocando a bolsa com as pontas de uns

dedos finos, bem tratados, que a qualquer um apeteceria beijar.

A morte apareceu à luz do dia numa rua estreita, com muros de um

lado e do outro, já quase fora da cidade. Não se vê qualquer porta ou

portão por onde possa ter saído, também não se percebe nenhum

indício que nos permita reconstituir o caminho que desde a fria sala

subterrânea a trouxe até aqui. o sol não molesta órbitas vazias, por isso

os crânios resgatados nas escavações arqueológicas não têm necessi-

dade de baixar as pálpebras quando a luz súbita lhes bate na cara e o

feliz antropólogo anuncia que o seu achado ósseo tem todo o aspecto de

ser um neanderthal, embora um exame posterior venha a demonstrar

que afinal se trata de um vulgar homo sapiens. A morte, porém, esta

que se fez mulher, tira da bolsa uns óculos escuros e com eles defende

os seus olhos agora humanos dos perigos de uma oftalmia mais do que

provável em quem ainda terá de habituar-se às refulgências de uma

manhã de verão. A morte desce a rua até onde os muros terminam e os

primeiros prédios se levantam. A partir daí encontra-se em terreno

conhecido, não há uma só casa destas e de todas quantas se estendem

diante dos seus olhos até aos limites da cidade e do país em que não

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tenha estado alguma vez, e até mesmo naquela obra em construção terá

de entrar daqui a duas semanas para empurrar de um andaime um

pedreiro distraído que não reparará onde vai pôr o pé. Em casos como

estes é nosso costume dizer que assim é a vida, quando muito mais

exactos seríamos se disséssemos que assim é a morte. A esta rapariga de

óculos escuros que está entrando num táxi não lhe daríamos nós tal

nome, provavelmente acharíamos que seria a própria vida em pessoa e

correríamos ofegantes atrás dela, ordenaríamos ao condutor doutro táxi,

se o houvesse, siga aquele carro, e seria inútil porque o táxi que a leva já

virou a esquina e não há aqui outro ao qual pudéssemos suplicar, Por

favor, siga aquele carro. Agora, sim, já tem todo o sentido dizermos que

é assim a vida e encolher resignados os ombros. Seja como for, e que

isso nos sirva ao menos de consolação, a carta que a morte leva na sua

bolsa tem o nome de outro destinatário e outro endereço, a nossa vez de

cair do andaime ainda não chegou. Ao contrário do que poderia

razoavelmente prever-se, a morte não deu ao motorista do táxi a

direcção do violoncelista, mas sim a do teatro em que ele toca. É certo

que decidira apostar pelo seguro depois dos sucessivos desaires sofri-

dos, mas não havia sido por uma mera casualidade que tinha começado

por se transformar em mulher, ou, como um espírito gramático poderia

também ser levado apensar, por aquilo dos géneros que havíamos

sugerido antes, ambos eles, neste caso, da mulher e da morte, femi-

ninos. Apesar da sua absoluta falta de experiência do mundo exterior,

particularmente no capítulo dos sentimentos, apetites e tentações, a

gadanha havia acertado em cheio no alvo quando, em certa altura da

conversa com a morte, se perguntou sobre o tipo do homem a quem ela

pretendia seduzir. Esta era a palavra-chave, seduzir. A morte poderia

ter ido directamente a casa do violoncelista, tocar-lhe à campainha e,

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quando ele abrisse aporta, lançar-lhe o primeiro engodo de um sorriso

mavioso depois de tirar os óculos escuros, anunciar-se, por exemplo,

como vendedora de enciclopédias, pretexto arqui-conhecido, mas de

resultados quase sempre seguros, e então de duas, uma, ou ele a

mandaria entrar para tratarem do assunto tranquilamente diante de

uma chávena de chá, ou ele lhe diria logo ali que não estava interessado

e fazia o gesto de fechar a porta, ao mesmo tempo que delicadamente

pedia desculpa pela recusa, Ainda se fosse uma enciclopédia musical,

justificaria com um sorriso tímido. Em qualquer das situações a entrega

da carta seria fácil, digamos mesmo que ultrajantemente fácil, e isto era

o que não agradava à morte. o homem não a conhecia a ela, mas ela

conhecia o homem, passara uma noite no mesmo quarto que ele,

ouvira-o tocar, cousas que, quer se queira, quer não, criam laços,

estabelecem uma harmonia, desenham um princípio de relações, dizer-

lhe de chofre, Vai morrer, tem oito dias para vender o violoncelo e

encontrar outro dono para o cão, seria uma brutalidade imprópria da

mulher bem-parecida em que se havia tornado. o seu plano é outro.

No cartaz exposto à entrada do teatro informava-se o respeitável

público de que nessa semana se dariam dois concertos da orquestra

sinfónica nacional, um na quinta-feira, isto é, depois de amanhã, outro

no sábado. É natural que a curiosidade de quem vem seguindo este

relato com escrupulosa e miudinha atenção, à cata de contradições,

deslizes, omissões e faltas de lógica, exija que lhe expliquem com que

dinheiro vai a morte pagar a entrada para os concertos se há menos de

duas horas acabou de sair de uma sala subterrânea onde não consta que

existam caixas automáticas nem bancos de porta aberta. E, já que se

encontra em maré de perguntar, também há-de querer que lhe digam se

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os motoristas de táxi passaram a não cobrar o devido às mulheres que

levam óculos escuros e têm um sorriso agradável e um corpo bem feito.

ora, antes que a mal intencionada suposição comece a lançar raízes,

apressamo-nos a esclarecer que a morte não só pagou o que o taxímetro

marcava como não se esqueceu de lhe juntar uma gorjeta. Quanto à

proveniência do dinheiro, se essa continua a ser a preocupação do

leitor, bastará dizer que saiu donde já tinham saído os óculos escuros,

isto é, da bolsa ao ombro, uma vez que, em princípio, e que se saiba,

nada se opõe a que de onde saiu uma cousa não possa sair outra. o que,

sim, poderia acontecer, era que o dinheiro com que a morte pagou a

viagem de táxi e haverá de pagar as duas entradas para os concertos,

além do hotel onde ficará hospedada nos próximos dias, se encontrasse

fora de circulação. Não seria a primeira vez que iríamos para a cama

com uma moeda e nos levantaríamos com outra. É de presumir,

portanto, que o dinheiro seja de boa qualidade e esteja coberto pelas leis

em vigor, a não ser que, conhecidos como são os talentos mistificadores

da morte, o motorista do táxi, sem se dar conta de que estava a ser

ludibriado, tenha recebido da mulher dos óculos escuros uma nota de

banco que não é deste mundo ou, pelo menos, não desta época, com o

retrato de um presidente da república em lugar da veneranda e familiar

face de sua majestade orei. A bilheteira do teatro acabou de abrir agora

mesmo, a morte entra, sorri, dá os bons-dias e pede dois camarotes de

primeira ordem, um para quinta-feira, outro para sábado.

Insiste com a empregada que pretende o mesmo camarote para

ambas as funções e que, questão fundamental, esteja situado no lado