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direito do palco e o mais próximo possível dele. A morte meteu a mão

ao acaso na bolsa, tirou a carteira das notas e entregou as que lhe

pareceram necessárias. A empregada devolveu o troco, Aqui está, disse,

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espero que vá gostar dos nossos concertos, suponho que é a primeira

vez, pelo menos não me lembro de a ter visto por aqui, e olhe que tenho

uma excelente memória para fisionomias, nenhuma me escapa, também

é certo que os óculos alteram muito a cara da gente, sobretudo se são

escuros como os seus.

A morte tirou os óculos, E agora que lhe parece, perguntou, Tenho a

certeza de nunca a ter visto antes, Talvez porque a pessoa que tem

diante de si, esta que sou agora, nunca tivesse precisado de comprar

entradas para um concerto, ainda há poucos dias tive a satisfação de

assistir a um ensaio da orquestra e ninguém deu pela minha presença,

Não compreendo, Lembre-me para que lho explique um dia, Quando,

um dia, o dia, aquele que sempre chega, Não me assuste. A morte sorriu

o seu lindo sorriso e perguntou, Falando francamente, acha que tenho

um aspecto que meta medo a alguém. Que ideia, não foi isso o que quis

dizer, Então faça como eu, sorria e pense em cousas agradáveis, A

temporada de concertos ainda durará um mês, ora aí está uma boa

notícia, talvez nos voltemos a ver na próxima semana, Estou sempre

aqui, já sou quase um móvel do teatro, Descanse, encontrá-la-ia ainda

que aqui não estivesse, Então cá fico à sua espera, Não faltarei. A morte

fez uma pausa e perguntou, A propósito, recebeu, ou alguém da sua

família, a carta de cor violeta, A da morte, sim, a da morte, Graças a

deus, não, mas os oito dias de um vizinho meu cumprem-se amanhã, o

pobrezinho está num desespero que dá pena, Que lhe havemos de

fazer, a vida é assim, Tem razão, suspirou a empregada, a vida é assim.

Felizmente outras pessoas haviam chegado para comprar entradas, de

outro modo não se sabe aonde esta conversação poderia ter levado.

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Agora trata-se de encontrar um hotel que não esteja muito longe da

casa do músico. A morte desceu andando para o centro, entrou numa

agência de viagens, pediu que a deixassem consultar um mapa da

cidade, situou rapidamente o teatro, daí o seu dedo indicador viajou

sobre o papel para o bairro onde o violoncelista vivia. A zona estava um

tanto afastada, mas havia hotéis nas redondezas. o empregado sugeriu-

lhe um deles, sem luxo, mas confortável. Ele próprio se ofereceu para

fazer a reserva pelo telefone e quando a morte lhe perguntou quanto

devia pelo trabalho respondeu, sorrindo, Ponha na minha conta. É o

costume, as pessoas dizem cousas à toa, lançam palavras à aventura e

não lhes passa pela cabeça deter-se a pensar nas consequências, Ponha

na minha conta, disse o homem, imaginando provavelmente, com a

incorrigível fatuidade masculina, algum aprazível encontro em futuros

próximos. Arriscou-se a que a morte lhe respondesse com um olhar frio,

Tenha cuidado, não sabe com quem está a falar, mas ela apenas sorriu

vagamente, agradeceu e saiu sem deixar número do telefone nem

cartão-de-visita. No ar ficou um difuso perfume em que se misturavam

a rosa e o crisântemo, De facto, é o que parece, metade rosa e metade

crisântemo, murmurou o empregado, enquanto dobrava lentamente o

mapa da cidade. Na rua, a morte mandava parar um táxi e dava ao

condutor a direcção do hotel. Não se sentia satisfeita consigo mesma.

Assustara a amável senhora da bilheteira, divertira-se à sua custa, e isso

tinha sido um abuso sem perdão. As pessoas já têm suficiente medo da

morte para necessitarem que ela lhes apareça com um sorriso a dizer,

olá, sou eu, que é a versão corrente, por assim dizer familiar, do

ominoso latim memento, homo, qui pulvis es et in pulverem reverteris, e logo

depois, como se fosse pouco, havia estado a ponto de atirar a uma

pessoa simpática que lhe estava fazendo um favor aquela estúpida

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pergunta com que as classes sociais chamadas superiores têm a

descarada sobranceria de provocar as que estão por baixo, Você sabe

com quem está a falar. Não, a morte não está contente com o seu

procedimento. Tem a certeza de que no estado de esqueleto nunca lhe

teria ocorrido portar-se desta maneira, se calhar foi por ter tomado

figura humana, estas cousas devem pegar-se, pensou. Casualmente

olhou pela janela do táxi e reconheceu a rua em que passavam, é aqui

que o violoncelista mora e aquele é o rés-do-chão em que vive. À morte

pareceu-lhe sentir um brusco aperto no plexo solar, uma agitação súbita

dos nervos, podia ser o frémito do caçador ao avistar a presa, quando a

tem na mira da espingarda, podia ser uma espécie de obscuro temor,

como se começasse a ter medo de si mesma. o táxi parou, o hotel é este,

disse o condutor. A morte pagou com os trocos que a empregada do

teatro lhe devolvera, Fique com o resto, disse, sem reparar que o resto

era superior ao que o taxímetro marcava. Tinha desculpa, só hoje é que

havia começado a utilizar os serviços deste transporte público.

Ao aproximar-se do balcão da recepção lembrou-se de que o empre-

gado da agência de viagens não lhe tinha perguntado como se chamava,

limitara-se a avisar o hotel, Vou-lhes mandar uma cliente, sim, uma

cliente, agora mesmo, e ela ali estava, esta cliente que não poderia dizer

que se chamava morte, com letra pequena, por favor, que não sabia que

nome dar, ah, a bolsa, a bolsa que traz ao ombro, a bolsa donde saíram

os óculos escuros e o dinheiro, a bolsa donde vai ter de sair um

documento de identificação. Boas tardes, em que posso servi-la,

perguntou o recepcionista, Telefonaram de uma agência de viagens há

um quarto de hora a fazer uma reserva para mim, sim, minha senhora,

fui eu que atendi, Pois aqui estou, Queira preencher esta ficha, por

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favor. Agora a morte já sabe o nome que tem, disse-lho o documento de

identificação aberto sobre o balcão, graças aos óculos escuros poderá

copiar discretamente os dados sem que o recepcionista se de conta, um

nome, uma data do nascimento, uma naturalidade, um estado civil,

uma profissão, Aqui está, disse, Quantos dias ficará no nosso hotel,

Tenciono sair na próxima segunda-feira, Permite-me que fotocopie o

seu cartão de crédito, Não o trouxe comigo, mas posso pagar já,

adiantado, se quiser, Ah, não, não é necessário, disse o recepcionista.

Pegou no documento de identificação para conferir os dados passados

para a ficha e, com uma expressão de estranheza na cara, levantou o

olhar. o retrato que o documento exibia era de uma mulher mais velha.

A morte tirou os óculos escuros e sorriu. Perplexo, o recepcionista olhou

novamente o documento, o retrato e a mulher que estava na sua frente

eram agora como duas gotas de água, iguais. Tem bagagem, perguntou

enquanto passava a mão pela testa húmida, Não, vim à cidade fazer

compras, respondeu a morte.

Permaneceu no quarto durante todo o dia, almoçou e jantou no

hotel. Viu televisão até tarde. Depois meteu-se na cama e apagou a luz.

Não dormiu. A morte nunca dorme.

Com o seu vestido novo comprado ontem numa loja do centro, a

morte assiste ao concerto. Está sentada, sozinha, no camarote de