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primeira ordem, e, como havia feito durante o ensaio, olha o violonce-

lista. Antes que as luzes da sala tivessem sido baixadas, quando a

orquestra esperava a entrada do maestro, ele reparou naquela mulher.

Não foi o único dos músicos a dar pela sua presença. Em primeiro lugar

porque ela ocupava sozinha o camarote, o que, não sendo caso raro, tão-

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pouco é frequente. Em segundo lugar porque era bonita, porventura

não a mais bonita entre a assistência feminina, mas bonita de um modo

indefinível, particular, não explicável por palavras, como um verso cujo

sentido último, se é que tal cousa existe num verso, continuamente

escapa ao tradutor. E finalmente porque a sua figura isolada, ali no

camarote, rodeada de vazio e ausência por todos os lados, como se

habitasse um nada, parecia ser a expressão da solidão mais absoluta. A

morte, que tanto e tão perigosamente havia sonido desde que saiu do

seu gelado subterrâneo, não sorri agora. Do público, os homens tinham-

na observado com dúbia curiosidade, as mulheres com zelosa inquie-

tação, mas ela, como uma águia descendo rápida sobre o cordeiro, só

tem olhos para o violoncelista. Com uma diferença, porém. No olhar

desta outra águia que sempre apanhou as suas vítimas há algo como

um ténue véu de piedade, as águias, já o sabemos, estão obrigadas a

matar, assim lho impõe a sua natureza, mas esta aqui, neste instante,

talvez preferisse, perante o cordeiro indefeso, abrir num repente as

poderosas asas e voar de novo para as alturas, para o frio ar do espaço,

para os inalcançáveis rebanhos das nuvens. A orquestra calou-se. o

violoncelista começa a tocar o seu solo como se só para isso tivesse

nascido. Não sabe que aquela mulher do camarote guarda na sua

recém-estreada malinha de mão uma carta de cor violeta de que ele é

destinatário, não o sabe, não poderia sabê-lo, e apesar disso toca como

se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo quanto havia

calado, os sonhos truncados, os anseios frustrados, a vida, enfim. Os

outros músicos olham-no com assombro, o maestro com surpresa e

respeito, o público suspira, estremece, o véu de piedade que nublava o

olhar agudo da águia é agora uma lágrima. o solo terminou já, a

orquestra, como um grande e lento mar, avançou e submergiu suave-

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mente o canto do violoncelo, absorveu-o, ampliou-o como se quisesse

conduzi-lo a um lugar onde a música se sublimasse em silêncio, a

sombra de uma vibração que fosse percorrendo a pele como a última e

inaudível ressonância de um timbale aflorado por uma borboleta. o voo

sedoso e malévolo da acherontia atropos perpassou rápido pela

memória da morte, mas ela afastou-o com um gesto de mão que tanto se

parecia àquele que fazia desaparecer as cartas de cima da mesa na sala

subterrânea como a um aceno de agradecimento para o violoncelista

que agora voltava a cabeça na sua direcção, abrindo caminho aos olhos

na obscuridade cálida da sala. A morte repetiu o gesto e foi como se os

seus finos dedos tivessem ido pousar-se sobre a mão que movia o arco.

Apesar de o coração ter feito tudo quanto podia para que tal

sucedesse, o violoncelista não errou a nota. os dedos não tornariam a

tocar-lhe, a morte tinha compreendido que não se deve nunca distrair o

artista na sua arte. Quando o concerto terminou e o público rompeu em

aclamações, quando as luzes se acenderam e o maestro mandou

levantar a orquestra, e depois quando fez sinal ao violoncelista para que

se levantasse, ele só, a fim de receber o quinhão de aplausos que por

merecimento lhe cabia, a morte, de pé no camarote, sorrindo enfim,

cruzou as mãos sobre o peito, em silêncio, e olhou, nada mais, os outros

que batessem palmas, os outros que soltassem gritos, os outros que

reclamassem dez vezes o maestro, ela só olhava. Depois, lentamente,

como a contragosto, o público começou a sair, ao mesmo tempo que a

orquestra se retirava.

Quando o violoncelista se virou para o camarote, ela, a mulher, já

não estava. Assim é a vida, murmurou.

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Enganava-se, a vida não é assim sempre, a mulher do camarote

estará à sua espera na porta dos artistas. Alguns dos músicos que vão

saindo olham-na com intenção, mas percebem, sem saber como, que ela

está defendida por uma cerca invisível, por um circuito de alta

voltagem em que se queimariam como minúsculas borboletas

nocturnas. Então, apareceu o violoncelista. Ao vê-la, estacou, chegou

mesmo a esboçar um movimento de recuo, como se, vista de perto, a

mulher fosse outra cousa que mulher, algo de outra esfera, de outro

mundo, da face oculta da lua. Baixou a cabeça, tentou juntar-se aos

colegas que saíam, fugir, mas a caixa do violoncelo, suspensa de um dos

seus ombros, dificultou-lhe a manobra de esquiva. A mulher estava

diante dele, dizia-lhe, Não me fuja, só vim para lhe agradecer a emoção

e o prazer de tê-lo ouvido, Muito obrigado, mas eu sou apenas músico

de orquestra, não um concertista famoso, daqueles que os admiradores

esperam durante uma hora só para lhe tocarem ou pedirem um

autógrafo, se a questão é essa, eu também lho poderei pedir, não trouxe

comigo o álbum de autógrafos, mas tenho aqui um sobrescrito que

poderá servir perfeitamente, Não me entendeu, o que quis dizer é que,

embora lisonjeado pela sua atenção, não me sinto merecedor dela, o

público não parece ter sido da mesma opinião, são dias, Exactamente,

são dias, e, por coincidência, é este o dia em que eu lhe apareço, Não

quereria que visse em mim uma pessoa ingrata, mal-educada, mas o

mais provável é que amanhã já lhe tenha passado o resto da emoção de

hoje, e, assim como me apareceu, desaparecerá, Não me conhece, sou

muito firme nos meus propósitos. E quais são eles, um só, conhecê-lo a

si, Já me conheceu, agora podemos dizer-nos adeus, Tem medo de mim,

perguntou a morte, Inquieta-me, nada mais, E é pouca cousa sentir-se

inquieto na minha presença. Inquietar-se não significa forçosamente ter

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medo, poderá ser apenas o alerta da prudência. A prudência só serve

para adiar o inevitável, mais cedo ou mais tarde acaba por se render,

Espero que não seja o meu caso, E eu tenho a certeza de que o será. o

músico passou a caixa do violoncelo de um ombro para outro, Está

cansado, perguntou a mulher, um violoncelo não pesa muito, o pior é a

caixa, sobretudo esta, que é das antigas, Necessito falar consigo, Não

vejo como, é quase meia-noite, toda a gente se foi embora, Ainda estão

ali algumas pessoas. Essas estão à espera do maestro, Conversaríamos

num bar, Está a ver-me a entrar com um violoncelo às costas num sítio

abarrotado de gente. sorriu o músico, imagine que os meus colegas iam

todos lá e levavam os instrumentos, poderíamos dar outro concerto.

Poderíamos, perguntou o músico, intrigado pelo plural. sim, houve um

tempo em que toquei violino, há mesmo retratos meus em que apareço

assim, Parece ter decidido surpreender-me com cada palavra que diz,

Está na sua mão saber até que ponto ainda serei capaz de surpreendê-lo,

Não se pode ser mais explícita, Engano seu, não me referia àquilo em

que pensou, E em que pensei eu, se se pode saber, Numa cama, e em