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mim nessa cama, Desculpe, A culpa foi minha, se eu fosse homem e

tivesse ouvido as palavras que lhe disse a si, certamente teria pensado o

mesmo, a ambiguidade paga-se, Agradeço-lhe a franqueza. A mulher

deu uns passos e disse, Vamos lá, Aonde, perguntou o violoncelista, Eu,

ao hotel onde estou hospedada, você, imagino que a sua casa, Não a

tornarei a ver, Já lhe passou a inquietação, Nunca estive inquieto, Não

minta, De acordo, estive-o, mas já não estou agora. Na cara da morte

apareceu uma espécie de sorriso em que não havia a sombra de uma

alegria, Precisamente quando mais motivos deveria ter, disse, Arrisco-

me, por isso repito a pergunta, Qual foi, se não a tornarei a ver, Virei ao

concerto de sábado, estarei no mesmo camarote, o programa é diferente,

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não tenho nenhum solo, Jáo sabia, Pelos vistos, pensou em tudo, sim, E

o fim disto, qual vai ser, Ainda estamos no princípio. Aproximava-se

um táxi livre. A mulher fez-lhe sinal para parar e voltou-se para o

violoncelista, Levo-o a casa, Não, levo-a eu ao hotel e depois sigo para

casa, será como eu digo, ou então vai ter de tomar outro táxi, Está

habituada a levar a sua avante, sim, sempre, Alguma vez terá falhado,

deus é deus e quase não tem feito outra cousa, Agora mesmo poderia

demonstrar-lhe que não falho, Estou pronto para a demonstração, Não

seja estúpido, disse de repente a morte, e havia na sua voz uma ameaça

soterrada, obscura, terrível, o violoncelo foi metido na mala do carro.

Durante todo o trajecto os dois passageiros não pronunciaram palavra.

Quando o táxi parou no primeiro destino, o violoncelista disse antes

de sair, Não consigo compreender o que está a passar-se entre nós, creio

que o melhor é não nos vermos mais, Ninguém o poderá impedir, Nem

sequer você, que sempre leva a sua avante, perguntou o músico,

esforçando-se por ser irónico, Nem sequer eu, respondeu a mulher, Isso

significa que falhará, Isso significa que não falharei. o motorista tinha

saído para abrir a mala do carro e esperava que fossem retirar a caixa. o

homem e a mulher não se despediram, não disseram até sábado, não se

tocaram, era como um rompimento sentimental, dos dramáticos, dos

brutais, como se tivessem jurado sobre o sangue e a água não voltar a

ver-se nunca mais. Com o violoncelo suspenso do ombro, o músico

afastou-se e entrou no prédio. Não se virou para trás, nem mesmo

quando no limiar da porta, por um instante, se deteve. A mulher olhava

para ele e apertava com força a malinha de mão. o táxi partiu. o

violoncelista entrou em casa murmurando irritado, É doida, doida,

doida, a única vez na vida que alguém me vai esperará saída para dizer

que toquei bem, sai-me uma mentecapta, e eu, como um néscio, a

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perguntar-lhe se não a tornarei a ver, a meter-me em trabalhos por meu

próprio pé, há defeitos que ainda podem ter algo de respeitável, pelo

menos digno de atenção, mas a fatuidade é ridícula, a enfatuação é

ridícula, e eu fui ridículo. Afagou distraído o cão que tinha corrido a

recebê-lo à porta e entrou na sala do piano. Abriu a caixa acolchoada,

retirou com todo o cuidado o instrumento que ainda teria de afinar

antes de ir para a cama porque as viagens de táxi, mesmo curtas, não

lhe faziam nenhum bem à saúde. Foi à cozinha pôr um pouco de

comida ao cão, preparou uma sanduíche para si, que acompanhou com

um copo de vinho. o pior da sua irritação já tinha passado, mas o

sentimento que a pouco e pouco a ia substituindo não era mais

tranquilizador.

Recordava frases que a mulher havia dito, a alusão às ambiguidades

que sempre se pagam e descobria que todas as palavras que ela

pronunciara, se bem que pertinentes no contexto, pareciam levar dentro

um outro sentido, algo que não se deixava captar. Algo tantalizante,

como a água que se retirou quando a intentávamos beber, como o ramo

que se afastou quando íamos para colher o fruto. Não direi que seja

louca, pensou, mas lá que é uma mulher estranha, sobre isso não há

dúvida. Acabou de comer e voltou à sala de música, ou do piano, as

duas maneiras por que a temos designado até agora quando teria sido

muito mais lógico chamar-lhe sala do violoncelo, uma vez que é este

instrumento o ganha-pão do músico, em todo o caso há que reconhecer

que não soaria bem, seria como se o lugar se degradasse, como se

perdesse uma parte da sua dignidade, bastará seguir a escala descen-

dente para compreender o nosso raciocínio, sala de música, sala do

piano, sala do violoncelo, até aqui ainda seria aceitável, mas imagine-se

aonde iríamos parar se começássemos a dizer sala do clarinete, sala do

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pífaro, sala do bombo, sala dos ferrinhos. As palavras também têm a

sua hierarquia, o seu protocolo, os seus títulos de nobreza, os seus

estigmas de plebeu. o cão veio com o dono e foi-se-lhe deitar ao lado

depois de ter dado as três voltas sobre si mesmo que eram a única

recordação que lhe havia ficado dos tempos em que havia sido lobo, o

músico afinava o violoncelo pelo lá do diapasão, restabelecia amorosa-

mente as harmonias do instrumento depois do bruto trato que a

trepidação do táxi sobre as pedras da calçada lhe infligira. Por

momentos havia conseguido esquecer a mulher do camarote, não

exactamente a ela, mas à inquietante conversação que haviam mantido

à porta dos artistas, se bem que a violenta troca de palavras no táxi

continuava a ouvir-se lá atrás, como um abafado rufar de tambores. Da

mulher do camarote não se esquecia, da mulher do camarote não queria

esquecer-se. Via-a de pé, com as mãos cruzadas sobre o peito, sentia que

lhe tocava o seu olhar intenso, duro como diamante e como ele

resplandecendo quando ela sorriu. Pensou que no sábado a tornaria a

ver, sim, vê-la-ia, mas ela já não se poria de pé nem cruzaria as mãos

sobre o peito, nem o olharia de longe, esse momento mágico havia sido

engolido, desfeito pelo momento seguinte, quando se virou para a ver

pela derradeira vez, assim o cria, e ela já lá não estava. o diapasão

regressara ao silêncio, o violoncelo recuperara a afinação e o telefone

tocou. o músico sobressaltou-se, olhou o relógio, quase uma e meia.

Quem diabo será a esta hora, pensou. Levantou o auscultador e durante

uns segundos ficou à espera. Era absurdo, claro, ele é que deveria falar,

dizer o nome, ou o número do telefone, provavelmente responderiam

do outro lado, Foi engano, desculpe, mas a voz que falou tinha

preferido perguntar, É o cão que está a atender o telefone, se é ele, ao

menos que faça o favor de ladrar, o violoncelista respondeu, sim, sou o

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cão, mas já há muito tempo que deixei de ladrar, também perdi o hábito

de morder, a não ser a mim mesmo quando a vida me repugna, Não se

zangue, estou a telefonar-lhe para que me perdoe, a nossa conversa

meteu-se logo por um atalho perigoso, e o resultado viu-se, um

desastre, Alguém a desviou para lá, mas não eu, A culpa foi toda

minha, em geral sou uma pessoa equilibrada, serena, Não me pareceu

nem uma cousa nem outra, Talvez sofra de dupla personalidade, Nesse

caso devemos ser iguais, eu próprio sou cão e homem, As ironias não