soam bem na sua boca, suponho que o seu ouvido musical já lho terá
dito, As dissonâncias também fazem parte da música, minha senhora,
Não me chame minha senhora, Não tenho outro modo de tratá-la,
ignoro como se chama, o que faz, o que é, A seu tempo o virá a saber, as
pressas são más conselheiras. mesmo agora acabámos de conhecer-nos,
Vai mais adiantada que eu, tem o meu número de telefone, Para isso
servem os serviços de informações, a recepção encarregou-se de
averiguar. É pena que este aparelho seja antigo. Porquê. se fosse dos
actuais eu já saberia donde me está a falar, Estou a falar-lhe do quarto
do hotel, Grande novidade, E quanto à antiguidade do seu telefone,
tenho de lhe dizer que contava que assim fosse, que não me surpreende
nada, Porquê, Porque em si tudo parece antigo, é como se em lugar de
cinquenta anos tivesse quinhentos. Como sabe que tenho cinquenta
anos, sou muito boa a calcular idades, nunca falho, Está-me a parecer
que presume demasiado de nunca falhar, Leva razão, hoje, por
exemplo, falhei duas vezes, posso jurar que nunca me tinha acontecido,
Não percebo. Tenho uma carta para lhe entregar e não lha entreguei.
podia tê-lo feito à saída do teatro ou no táxi, Que carta é essa,
Assentemos em que a escrevi depois de ter assistido ao ensaio do seu
concerto, Estava lá, Estava, Não a vi, É natural, não podia ver-me, De
197
qualquer maneira, não é o meu concerto, sempre modesto, E assen-
temos não é a mesma cousa que ser certo, Às vezes, sim, Mas neste caso,
não, Parabéns, além de modesto, perspicaz. Que carta é essa, Também a
seu tempo o saberá, Porquê não ma entregou, se teve oportunidade
para isso, Duas oportunidades. Insisto, porquê não ma deu, Isso é o que
eu espero vir a saber, talvez lha entregue no sábado, depois do concerto,
Segunda-feira já terei saído da cidade, Não vive aqui, Viver aqui, o que
se chama viver, não ViVo, Não entendo nada, falar consigo é o mesmo
que ter caído num labirinto sem portas. ora aí está uma excelente
definição da vida, Você não é a vida, sou muito menos complicada que
ela. Alguém escreveu que cada um de nós é por enquanto a vida, sim,
por enquanto. só por enquanto. Quem dera que esta confusão ficasse
esclarecida depois de amanhã, a carta, a razão porque não ma deu,
tudo, estou cansado de mistérios, Isso a que chama mistérios é muitas
vezes uma protecção. há os que levam armaduras, há os que levam
mistérios, Protecção ou não, quero ver essa carta, se eu não falhar
terceira vez, vê-la-á, E porquê irá falhar terceira vez, se tal suceder só
poderá ser pela mesma razão que falhei nas anteriores, Não brinque
comigo, estamos como no jogo do gato e do rato, o tal jogo em que o
gato sempre acaba por apanhar o rato, Excepto se o rato conseguir pôr
um guizo no pescoço do gato. A resposta é boa, sim senhor, mas não
passa de um sonho fútil, de uma fantasia de desenhos animados, ainda
que o gato estivesse a dormir, o ruído acordá-lo-a, e então adeus rato,
sou eu esse rato a quem está a dizer adeus, se estamos metidos no jogo,
um dos dois terá de sê-lo forçosamente. e eu não o vejo a si com figura
nem astúcia para gato, Portanto condenado a ser rato toda a vida,
Enquanto ela durar, sim, um rato violoncelista,outro desenho animado,
Ainda não reparou que os seres humanos são desenhos animados, Você
198
também, suponho. Teve ocasião de ver o que pareço, uma linda mulher,
obrigada. Não sei se já se apercebeu de que esta conversação ao telefone
se parece muito com um flarte, se a telefonista do hotel se diverte a
escutar as conversas dos hóspedes. já terá chegado a essa mesma
conclusão, Mesmo que seja assim, não há que temer consequências
graves, a mulher do camarote, cujo nome continuo a ignorar, partirá na
segunda-feira. Para não voltar nunca mais, Tem a certeza, Dificilmente
se repetirão os motivos que me fizeram vir desta vez.
Dificilmente não significa que venha a ser impossível. Tomarei as
providências necessárias para não ter de repetir a viagem. Apesar de
tudo valeu a pena, Apesar de tudo, quê. Desculpe, não fui delicado,
queria dizer que, Não se canse a ser amável comigo, não estou
habituada, além disso é fácil adivinhar o que ia a dizer, no entanto, se
considera que deverá dar-me uma explicação mais completa. talvez
possamos continuar a conversa no sábado, Não a verei daqui até lá,
Não. A ligação foi cortada. o violoncelista olhou o telefone que ainda
tinha na mão, húmida de nervosismo, Devo ter sonhado, murmurou.
isto não é aventura para acontecer-me a mim. Deixou cair o telefone no
descanso e perguntou. agora em voz alta, ao piano, ao violoncelo, às
estantes, Que me quer esta mulher, quem é, porquê aparece na minha
vida. Despertado pelo ruído, o cão tinha levantado a cabeça. Nos seus
olhos havia uma resposta. mas o violoncelista não lhe deu atenção,
cruzava a sala de um lado para outro, com os nervos mais agitados que
antes, e a resposta era assim, Agora que falas nisso, tenho a vaga
lembrança de haver dormido no regaço de uma mulher, pode ser que
tenha sido ela, Que regaço, que mulher, teria perguntado o violonce-
lista, Tu dormias, onde, Aqui. na tua cama, E ela, onde estava, Por aí,
Boa piada. senhor cão, há quanto tempo é que não entra uma mulher
199
nesta casa, naquele quarto. vá. diga-me. Como deverás saber, a
percepção de tempo da espécie dos caninos não é igual à dos humanos.
mas realmente creio ter sido muito o tempo que passou desde a última
senhora que recebeste na tua cama, isto dito sem ironia, claro está,
Portanto sonhaste, É o mais provável. Os cães são uns sonhadores
incorrigíveis. chegamos a sonhar de olhos abertos, basta vermos algo na
penumbra para logo imaginarmos que aquilo é um regaço de mulher e
saltarmos para ele, Cousas de cães, diria o Violoncelista. Mesmo não
sendo certo, responderia o cão, não nos queixamos. No seu quarto do
hotel, a morte, despida, está parada diante do espelho. Não sabe quem
é.
Durante todo o dia seguinte a mulher não telefonou, o violoncelista
não saiu de casa, à espera. A noite passou. e nem uma palavra. o
violoncelista dormiu ainda pior que na noite anterior. Na manhã de
sábado, antes de sair para o ensaio, entrou-lhe na cabeça a peregrina
ideia de ir perguntar pelos hotéis das imediações se ali estaria
hospedada uma mulher com esta figura, esta cor de cabelo, esta cor dos
olhos, esta forma de boca, este sorriso, este mover das mãos, mas
desistiu do alucinado propósito. era óbvio que seria imediatamente
despedido com um ar de indisfarçável suspeita e um seco Não estamos
autorizados a dar a informação que pede. o ensaio não lhe correu bem
nem mal, limitou-se a tocar o que estava escrito no papel. sem outro
empenho que não errar demasiadas notas. Quando terminou correu
outra vez para casa. Ia a pensar que se ela tivesse telefonado durante a
sua ausência não teria encontrado um miserável gravador para deixar o
recado, Não sou um homem de há quinhentos anos, sou um troglodita