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ontem no concerto. o violoncelista sentou-se, tirou a trela ao cão, disse-

lhe Vai, e, sem olhar a mulher, respondeu, Não tenho nada que

desculpar-lhe, é uma cousa que está sempre a suceder, as pessoas

compram bilhete e depois, por isto ou por aquilo, não podem ir, é

natural, E sobre o nosso adeus, não tem opinião, perguntou a mulher, É

uma delicadeza muito grande da sua parte considerar que deveria vir

despedir-se de um desconhecido, ainda que eu não seja capaz de

imaginar como pôde saber que venho a este parque todos os domingos,

Há poucas cousas que eu não saiba de si, Por favor, não regressemos às

absurdas conversas que tivemos na quinta-feira à porta do teatro e

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depois ao telefone, não sabe nada de mim, nunca nos tínhamos visto

antes, Lembre-se de que estive no ensaio, E não compreendo como o

conseguiu, o maestro é muito rigoroso com a presença de estranhos, e

agora não me venha para cá com a história de que também o conhece a

ele, Não tanto como a si, mas você é uma excepção, Melhor que não o

fosse, Porquê, Quer que lho diga, quer mesmo que lho diga, perguntou

o violoncelista com uma veemência que roçava o desespero. Quero,

Porque me apaixonei por uma mulher de quem não sei nada, que anda

a divertir-se à minha custa, que irá amanhã sei lá para onde e que não

voltarei a ver, É hoje que partirei, não amanhã, Mais essa, E não é

verdade que tenha andado a divertir-me à sua custa, Pois se não anda,

imita muito bem, Quanto a ter-se apaixonado por mim, não espere que

lhe responda, há certas palavras que estão proibidas na minha boca,

Mais um mistério, E não será o último, Com esta despedida vão ficar

todos resolvidos, outros poderão começar, Por favor, deixe-me, não me

atormente mais, A carta, Não quero saber da carta para nada, Mesmo

que quisesse não lha poderia dar, deixei-a no hotel, disse a mulher

sorrindo, Pois então rasgue-a. Pensarei no que devo fazer com ela, Não

precisa pensar. Rasgue-a e acabou-se. A mulher pôs-se de pé. Já se vai

embora, perguntou o violoncelista. Não se havia levantado, estava de

cabeça baixa, ainda tinha algo para dizer. Nunca lhe toquei, murmurou,

Fui eu que não quis que me tocasse, Como o conseguiu, Para mim não é

difícil, Nem sequer agora, Nem sequer agora, Ao menos um aperto de

mão, Tenho as mãos frias. o violoncelista ergueu a cabeça. A mulher já

não estava ali.

Homem e cão saíram cedo do parque, as sanduíches foram

compradas para comer em casa, não houve sestas ao sol. A tarde foi

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longa e triste, o músico pegou num livro, leu meia página e atirou-o

para o lado. sentou-se ao piano para tocar um pouco. mas as mãos não

lhe obedeceram, estavam entorpecidas, frias, como mortas. E, quando se

voltou para o amado violoncelo, foi o próprio instrumento que se lhe

negou. Dormitou numa cadeira, quis afundar-se num sono

interminável, não acordar nunca mais. Deitado no chão, à espera de um

sinal que não vinha, o cão olhava-o. Talvez a causa do abatimento do

dono fosse a mulher que apareceu no parque, pensou. afinal não era

certo aquele provérbio que dizia que o que os olhos não vêem, não o

sente o coração. os provérbios estão constantemente a enganar-nos,

concluiu o cão. Eram onze horas quando a campainha da porta tocou.

Algum vizinho com problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se

para ir abrir.

Boas noites, disse a mulher do camarote, pisando o limiar, Boas

noites, respondeu o músico, esforçando-se por dominar o espasmo que

lhe contraía a glote. Não me pede que entre, Claro que sim, faça o favor.

Afastou-se para a deixar passar. fechou aporta. Tudo devagar.

lentamente, para que o coração não lhe explodisse. Com as pernas

tremendo acompanhou-a à sala de música, com a mão que tremia

indicou-lhe a cadeira. Pensei que já se tivesse ido embora, disse, Como

vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas partirá amanhã, A isso me

comprometi. suponho que veio para trazer acarta, que não a rasgou.

sim, tenho-a aqui nesta bolsa, Dê-ma. então, Temos tempo, recordo ter-

lhe dito que as pressas são más conselheiras, Como queira. estou ao seu

dispor. Di-lo a sério.

É o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando faço rir.

principalmente quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe um

favor, Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto, Não vejo

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de que maneira, Tem ali um piano. Nem pense nisso, sou um pianista

medíocre, ou o violoncelo, É outra cousa, sim, poderei tocar-lhe uma ou

duas peças se faz muita questão. Posso escolher, perguntou a mulher,

sim, mas só o que estiver ao meu alcance, dentro das minhas

possibilidades. A mulher pegou no caderno da suite número seis de

bach e disse, Isto, É muito longa, leva mais de meia hora, e já começa a

ser tarde, Repito-lhe que temos tempo, Há uma passagem no prelúdio

em que tenho dificuldades, Não importa. salta-lhe por cima quando lá

chegar, disse a mulher, ou nem será preciso. vai ver que tocará ainda

melhor que rostropovitch. o violoncelista sorriu, Pode ter a certeza.

Abriu o caderno sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda

no braço do violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as

cordas, e começou. De mais sabia ele que não era rostropovitch. Que

não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um

programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão

deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de

música, de partituras. era o próprio johann sebastian bach compondo

em cöthen o que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas

quase tantas como foram as da criação. A passagem difícil foi transposta

sem que ele se tivesse apercebido da proeza que havia cometido, mãos

felizes faziam murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que

faltou a Rostropovitch, esta sala de música, esta hora, esta mulher.

Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam,

por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam.

Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista

perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher

respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe aboca. Entraram no

quarto. despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu

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enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a

morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a

carta de cor violeta. olhou em redor como se estivesse à procura de um

lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do

violoncelo, ou então no próprio quarto. debaixo da almofada em que a

cabeça do homem descansava. Não o fez. saiu para a cozinha, acendeu

um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o

olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe

fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo

comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte,

essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou

para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe