sua família ou da congestionada enfermaria de um hospital, uma vez
que nem aqui nem ali conseguirá morrer, como também nem ali nem
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aqui poderá recuperar a saúde. o governo quer aproveitar esta
oportunidade para informar a população de que prosseguem em ritmo
acelerado os trabalhos de investigação que, assim o espera e confia, hão-
de levar a um conhecimento satisfatório das causas, até este momento
ainda misteriosas, do súbito desaparecimento da morte. Igualmente
informa que uma nutrida comissão interdisciplinar, incluindo represen-
tantes das diversas religiões em vigor e filósofos das diversas escolas
em actividade, que nestes assuntos sempre têm uma palavra a dizer,
está encarregada da delicada tarefa de reflectir sobre o que virá a ser um
futuro sem morte, ao mesmo tempo que tentará elaborar uma previsão
plausível dos novos problemas que a sociedade terá de enfrentar, o
principal dos quais alguns resumiriam nesta cruel pergunta, Que vamos
fazer com os velhos, se já não está aí a morte para lhes cortar o excesso
de veleidades macróbias.
Os lares para a terceira e quarta idades, essas benfazejas instituições
criadas em atenção à tranquilidade das famílias que não têm tempo
nem paciência para limpar os ranhos, atender aos esfíncteres fatigados e
levantar-se de noite para chegar a arrastadeira, também não tardaram,
tal como já o haviam feito os hospitais e as agências funerárias, a vir
bater com a cabeça no muro das lamentações. Fazendo justiça a quem se
deve, temos de reconhecer que a incerteza em que se encontravam
divididos, isto é, continuar ou não continuar a receber hóspedes, era
uma das mais angustiantes que poderiam desafiar os esforços
equitativos e o talento planificador de qualquer gestor de recursos
humanos. Principalmente porque o resultado final, e isso é o que
caracteriza os autênticos dilemas, iria ser sempre o mesmo. Habituados
até agora, tal como os seus queixosos parceiros da injecção intravenosa
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e da coroa de flores com fita roxa, à segurança resultante da contínua e
imparável rotação de vidas e mortes, umas que vinham entrando,
outras que iam saindo, os lares da terceira e quarta idades não queriam
nem pensar num futuro de trabalho em que os objectos dos seus
cuidados não mudariam nunca de cara e de corpo, salvo para exibi-los
mais lamentáveis em cada dia que passasse, mais decadentes, mais
tristemente descompostos, o rosto enrugando-se, prega a prega, igual
que uma passa de uva, os membros trémulos e duvidosos, como um
barco que inutilmente andasse à procura da bússola que lhe tinha caído
ao mar. um novo hóspede sempre havia sido motivo de regozijo para os
lares do feliz ocaso, tinha um nome que seria preciso fixar na memória,
hábitos próprios trazidos do mundo exterior, manias que eram só dele,
como um certo funcionário aposentado que todos os dias tinha de lavar
a fundo a escova de dentes porque não suportava ver nela restos da
pasta dentífrica, ou aquela anciã que desenhava árvores genealógicas da
sua família e nunca acertava com os nomes que deveria pendurar nos
ramos. Durante algumas semanas, até que a rotina nivelasse a atenção
devida aos internados, ele seria o novo, o benjamim do grupo, e iria sê-
lo pela última vez na vida, ainda que durando ela tanto como a
eternidade, esta que, como do sol costuma dizer-se, passou a brilhar
para toda a gente deste país afortunado, nós que veremos extinguir-se o
astro do dia e continuaremos vivos, ninguém sabe como nem porquê.
Agora, porém, o novo hóspede, excepto se ainda veio preencher alguma
vaga e arredondar a receita do lar, é alguém cujo destino se conhece de
antemão, não o veremos sair daqui para ir morrer a casa ou ao hospital
como acontecia nos bons tempos, enquanto os outros hóspedes
fechavam à chave apressadamente a porta dos seus quartos para que a
morte não entrasse e os levasse também a eles, já sabemos que tudo isto
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são cousas de um passado que não voltará, mas alguém do governo terá
de pensar na nossa sorte, nós, patrão, gerente e empregados dos lares
do feliz ocaso, o destino que nos espera é não termos ninguém que nos
acolha quando chegar a hora em que tenhamos de baixar os braços,
reparai que nem sequer somos senhores daquilo que de alguma
maneira também havia sido nosso, ao menos pelo trabalho que nos deu
durante anos e anos, aqui deverá perceber-se que os empregados
tomaram a palavra, o que queremos dizer é que não haverá sítio para
estes que somos nos lares do feliz ocaso, salvo se pusermos de lá para
fora uns quantos hóspedes, ao governo já lhe tinha ocorrido a mesma
ideia quando foi daquele debate sobre a pletora dos hospitais, que a
família reassuma as suas obrigações, disseram, mas para isso seria
necessário que ainda se encontrasse nela alguém com suficiente tino na
cabeça e energias bastantes no resto do corpo, dons cujo prazo de
validade, como sabemos por experiência própria e pelo panorama que o
mundo oferece, têm a duração de um suspiro se o compararmos com
esta eternidade recentemente inaugurada, o remédio, salvo opinião
mais abalizada, seria multiplicar os lares do feliz ocaso, não como até
agora, aproveitando vivendas e palacetes que em tempos conheceram
melhor sorte, mas construindo de raiz grandes edifícios, com a forma de
um pentágono, por exemplo, de uma torre de babel, de um labirinto de
cnossos, primeiro bairros, depois cidades, depois metrópoles, ou,
usando palavras mais cruas, cemitérios de vivos onde a fatal e
irrenunciável velhice seria cuidada como deus quisesse, até não se sabe
quando, pois os seus dias não teriam fim, o problema bicudo, e para ele
nos sentimos no dever de chamar a atenção de quem de direito, é que,
como passar do tempo, não só haverá cada vez mais idosos internados
nos lares do feliz ocaso, como também será necessária cada vez mais
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gente para tomar conta deles, dando em resultado que o rombóide das
idades virará rapidamente os pés pela cabeça, uma massa gigantesca de
velhos lá em cima, sempre em crescimento, engolindo como uma
serpente pitão as novas gerações, as quais, por sua vez, na sua maioria
convertidas em pessoal de assistência e administração dos lares do feliz
ocaso, depois de terem gasto a melhor parte da sua vida a cuidar de
velhorros de todas as idades, quer as normais, quer as matusalénicas,
multidões de pais, avós, bisavós, trisavós, tetravós, pentavós, hexavós, e
por aí fora, ad infinitum, se juntarão, uma atrás de outra, como folhas
que das árvores se desprendem e vão tombar sobre as folhas dos
outonos pretéritos, mais oü sont les neiges d'antan, do formigueiro
interminável dos que, pouco a pouco, levaram a vida a perder os dentes
e o cabelo, das legiões dos de má vista e mau ouvido, dos herniados,
dos catarrosos, dos que fracturaram o colo do fémur, dos paraplégicos,
dos caquécticos agora imortais que não são capazes de segurar nem a
baba que lhes escorre do queixo, vossas excelências, senhores que nos
governam, talvez não nos queiram crer, mas o que aí nos vem em Cima