é o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pôde haver
sonhado, nem mesmo nas escuras cavernas, quando tudo era terror e
tremor, se terá visto semelhante cousa, dizemo-lo nós que temos a
experiência do primeiro lar do feliz ocaso, é certo que então tudo era em
ponto pequeno, mas para alguma cousa a imaginação nos haveria de
servir, se quer que lhe falemos com franqueza, de coração nas mãos,
antes a morte, senhor primeiro-ministro, antes a morte que tal sorte.
Uma terrível ameaça que vem pôr em perigo a sobrevivência da
nossa indústria, foi o que declarou aos órgãos de comunicação social o
presidente da federação das companhias seguradoras, referindo-se aos
muitos milhares de cartas que, mais ou menos por idênticas palavras,
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Como se as tivessem copiado de uma minuta única, haviam entrado nos
últimos dias nas empresas trazendo uma ordem de cancelamento
imediato das apólices de seguros de vida dos respectivos signatários,
Afirmavam estes que, considerando o facto público e notório de que a
morte havia posto termo aos seus dias, seria absurdo, para não dizer
simplesmente estúpido, continuar a pagar uns prémios altíssimos que
só iram servir, sem qualquer espécie de contrapartida, para enriquecer
as companhias. Não estou para sustentar burros a pão-de-ló, desaba-
fava, em post scriptum, um segurado particularmente maldisposto.
Alguns iam mais longe, reclamavam a evolução das quantias pagas,
mas, esses, percebia-se logo que era só um atirar barro à parede por
descargo de consciência, a ver se pegava. À inevitável pergunta dos
jornalistas sobre o que pensavam fazer as companhias de seguros para
contrapor à salva de artilharia pesada que de repente lhes tinha caído
em cima, o presidente da federação respondeu que, embora os
assessores jurídicos estivessem, neste preciso momento, a estudar com
toda a atenção a letra pequena das apólices à procura de qualquer
possibilidade interpretativa que permitisse, sempre dentro da mais
estrita legalidade, claro esta, impor aos segurados heréticos, mesmo
contra sua vontade, a obrigação de pagar enquanto fossem vivos, quer
dizer, sempiternamente, o mais provável, no entanto, seria que viesse a
ser-lhes proposto um pacto de consenso, um acordo de cavalheiros, o
qual consistiria na inclusão de uma breve adenda às apólices, tanto para
a rectificação de agora como para a vigência futura, em que ficaria
fixada a idade de oitenta anos para morte obrigatória, obviamente em
sentido figurado, apressou-se o presidente a acrescentar, sorrindo com
indulgência. Desta maneira, as companhias passariam a cobrar os
prémios na mais perfeita normalidade até à data em que o feliz
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segurado cumprisse o seu octogésimo aniversário, momento em que,
uma vez que se havia convertido em alguém virtualmente morto,
mandaria proceder à cobrança do montante integral do seguro, o qual
lhe seria pontualmente satisfeito. Havia que acrescentar ainda, e isso
não seria o menos interessante, que, no caso de assim o desejarem, os
clientes poderiam renovar o seu contrato por mais oitenta anos, ao fim
dos quais, para os efeitos devidos, se registaria o segundo óbito, repe-
tindo-se o procedimento anterior, e assim sucessivamente. ouviram-se
murmúrios de admiração e algum esboço de aplauso entre os jornalistas
entendidos em cálculo actuarial, que o presidente agradeceu baixando
de leve a cabeça. Estratégica e tacticamente, a jogada tinha sido perfeita,
ao ponto de que logo no dia a seguir começaram a afluir cartas às
companhias de seguros dando por nulas e sem efeito as primeiras.
Todos os segurados se declaravam dispostos a aceitar o acordo de
cavalheiros proposto, graças ao qual se poderá dizer, sem exagero, que
este foi um daqueles raríssimos casos em que ninguém perdia e todos
ganhavam. Em especial as companhias de seguros, salvas da catástrofe
por um cabelo. Já se espera que na próxima eleição o presidente da
federação seja reconduzido no cargo que tão brilhantemente
desempenha.
Da primeira reunião da comissão interdisciplinar tudo se pode dizer
menos que tenha corrido bem. A culpa, se o pesado termo tem aqui
cabimento, teve-a o dramático memorando levado ao governo pelos
lares do feliz ocaso, em especial aquela cominatória frase que o
rematava, Antes a morte, senhor primeiro-ministro, antes a morte que
tal sorte. Quando os filósofos, divididos, como sempre, em pessimistas e
optimistas, uns carrancudos, outros risonhos, se dispunham a
recomeçar pela milésima vez a cediça disputa do copo de que não se
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sabe se está meio cheio ou meio vazio, a qual disputa, transferida para a
questão que ali os chamara, se reduziria no final, com toda a
probabilidade, a um mero inventário das vantagens ou desvantagens de
estar morto ou de viver para sempre, os delegados das religiões
apresentaram-se formando uma frente unida comum com a qual
aspiravam a estabelecer o debate no único terreno dialéctico que lhes
interessava, isto é, a aceitação explícita de que a morte era absoluta-
mente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto,
qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfema
como absurda, porquanto teria de pressupor. inevitavelmente, um deus
ausente, para não dizer simplesmente desaparecido. Não se tratava de
uma atitude nova, o próprio cardeal já havia apontado o dedo ao busílis
que significaria esta versão teológica da quadratura do círculo quando,
na sua conversação telefónica com o primeiro- ministro, admitiu, ainda
que por palavras muito menos claras, que se se acabasse a morte não
poderia haver ressurreição, e que se não houvesse ressurreição, então
não teria sentido haver igreja. ora, sendo esta, pública e notoriamente, o
único instrumento de lavoura de que deus parecia dispor na terra para
lavrar os caminhos que deveriam conduzir ao seu reino, a conclusão
óbvia e irrebatível é de que toda a história santa termina inevitavel-
mente num beco sem saída. Este ácido argumento saiu da boca do mais
velho dos filósofos pessimistas, que não ficou por aqui e acrescentou
acto contínuo, As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos,
não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam
dela como do pão para a boca. os delegados das religiões não se deram
ao incómodo de protestar. Pelo contrário, um deles, conceituado
integrante do sector católico, disse, Tem razão, senhor filósofo, é para
isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida
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com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora, acolham a
morte como uma libertação, o paraíso, Paraíso ou inferno, ou cousa
nenhuma, o que se passe depois da morte importa-nos muito menos
que o que geralmente se crê, a religião, senhor filósofo, é um assunto da
terra, não tem nada que ver com o céu, Não foi o que nos habituaram a
ouvir, Algo teríamos que dizer para tornar atractiva a mercadoria, Isso
quer dizer que em realidade não acreditam na vida eterna, Fazemos de
conta.
Durante um minuto ninguém falou. o mais velho dos pessimistas