um morto que parece vivo, se é assim que quer, cumpriremos a sua
vontade, Dá-me um beijo. A filha beijou-o na testa e saiu a chorar. Dali,
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lavada em lágrimas, foi anunciar ao resto da família que o pai havia
determinado que o levassem nessa mesma noite ao outro lado da
fronteira, lá onde, segundo a sua ideia, a morte, ainda em vigor nesse
país, não teria mais remédio que aceitá-lo. A notícia foi recebida com
um sentimento complexo de orgulho e resignação, orgulho porque não
é cousa de todos os dias ver um ancião oferecer-se assim, por seu
próprio pé, à morte que lhe foge, resignação porque perdido por um,
perdido por cem, que se lhe há-de fazer, contra o que tem de ser toda a
força sobra. Como está escrito que não se pode ter tudo na vida, o
corajoso velho deixará em seu lugar nada mais que uma família pobre e
honesta que certamente não se esquecerá de lhe honrar a memória. A
família não era só esta filha que saiu a chorar e a criança que não tinha
feito mal nenhum ao mundo, era também uma outra filha e o marido
respectivo, pais de três meninos felizmente de boa saúde, mais uma tia
solteira a quem já se lhe passou há muito a idade de casar. o outro
genro, marido da filha que saiu a chorar, está a viver num país distante,
emigrou para ganhar a vida e amanhã saberá que perdeu de uma só vez
o único filho que tinha e o sogro a quem estimava. É assim a vida, vai
dando com uma mão até que chega o dia em que tira tudo com a outra.
Que importam pouco a este relato os parentescos de uns tantos
camponeses que o mais provável é não voltarem a aparecer nele,
melhor que ninguém o sabemos, mas pareceu-nos que não estaria bem,
mesmo de um estrito ponto de vista técnico-narrativo, despachar em
duas rápidas linhas precisamente aquelas pessoas que irão ser
protagonistas de um dos mais dramáticos lances ocorridos nesta,
embora certa, inverídica história sobre as intermitências da morte. Aí
ficam, pois. Faltou-nos apenas dizer que a tia solteira ainda manifestou
uma dúvida, Que dirá a vizinhança, perguntou, quando der por que já
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não estão aqui aqueles que, sem morrer, à morte estavam. Em geral a tia
solteira não fala de uma maneira tão preciosa, tão rebuscada, mas se o
fez agora foi para não rebentar em lágrimas, que assim sucederia se
tivesse pronunciado o nome do menino que não tinha feito mal nenhum
ao mundo e as palavras meu irmão. Respondeu-lhe o pai dos outros três
meninos, Dizemos o que se passou e esperamos as consequências, pela
certa seremos acusados de fazer enterros clandestinos, fora do cemitério
e sem conhecimento das autoridades, e ainda por cima noutro país,
oxalá não comecem nenhuma guerra por causa disto, disse a tia.
Era quase meia-noite quando saíram a caminho da fronteira. Como
se suspeitasse de que algo de estranho estaria a tramar-se, a aldeia havia
tardado mais do que o costume a recolher aos lençóis. Por fim, o
silêncio tomou conta das ruas e as luzes das casas foram-se apagando
uma a uma. Amula foi atrelada à carroça, depois, com muito esforço,
apesar do pouco que pesava, o genro e as duas filhas fizeram descer o
avô, tranquilizaram-no quando ele, em voz sumida, perguntou se
levavam a pá e a enxada, Levamos, sim, esteja descansado, e logo a mãe
da criança subiu, tomou-a ao colo, disse Adeus meu filho que não te
torno a ver, e isto não era verdade, porque ela também iria na carroça
com a irmã e o cunhado, posto que três não seriam de mais para a
tarefa. A tia solteira não quis despedir-se dos viajantes que não
regressariam e fechou-se no quarto com os sobrinhos. Como os aros
metálicos das rodas da carroça causariam estrépito no empedrado
irregular da calçada, com grave risco de fazerem aparecer à janela os
moradores curiosos de saber aonde iriam os vizinhos àquela hora,
deram um rodeio por caminhos de terra até que chegaram finalmente à
estrada, fora da povoação. Não estavam muito longe da fronteira, mas o
pior era que a estrada não os levaria lá, em certa altura teriam de a
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deixar e continuar por atalhos onde a carroça mal caberia, sem falar que
o último troço tinha de ser feito a pé, por assim dizer a corta-mato,
carregando com o avô sabe deus como. Felizmente o genro conhece
bem aquelas paragens porque, além de as ter calcorreado como caçador,
também, uma vez por outra, nelas havia exercido de contrabandista
amador. Tardaram quase duas horas a chegar ao ponto onde teriam de
deixar a carroça, e foi aí que o genro teve a ideia de levarem o avô em
cima da mula, fiado na firmeza dos jarretes do animal. Desatrelaram a
besta, aliviaram-na dos arreios supérfluos, e, com muito trabalho,
trataram de içar o velho. As duas mulheres choravam Ai o meu querido
pai, Ai o meu querido pai, e com as lágrimas ia-se-lhes a pouca força
que ainda lhes restava. o pobre homem estava meio inconsciente, como
se fosse já atravessando o primeiro umbral da morte. Não conseguimos,
exclamou com desespero o genro, mas de súbito lembrou-se de que a
solução seria montar primeiro ele próprio e puxá-lo depois para a cruz
da mula, à sua frente, Levo-o abraçado, não há outra maneira, vocês
ajudem daí. A mãe do menino foi à carroça ajeitar a pequena manta que
o cobria, não fosse o pobrezinho colher frio, e voltou para ajudar a irmã,
A uma, às duas, às três, disseram, mas foi como se nada, agora o corpo
pesava que parecia chumbo, não puderam fazer mais que soerguê-lo do
chão. Então deu-se uma cousa nunca vista, uma espécie de milagre, um
prodígio, uma maravilha. Como se por um instante a lei da gravidade
se tivesse suspendido ou passado a exercer-se ao contrário, de baixo
para cima, o avô escapou-se suavemente das mãos das filhas e, por si
mesmo, levitando, subiu para os braços estendidos do genro. o céu, que
desde o princípio da noite havia estado coberto de pesadas nuvens que
ameaçavam chuva, abriu-se e deixou aparecer a lua. Já podemos seguir,
disse o genro, falando para a mulher, tu conduzes a mula. A mãe do
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menino abriu um pouco a manta para ver como estava o filho. As
pálpebras, cerradas, eram como duas pequenas manchas pálidas, o
rosto um desenho confuso. Então ela soltou um grito que varreu todo o
espaço ao redor e fez estremecer nas suas covas os bichos do mato, Não,
não serei eu quem leve o meu filho ao outro lado, não o trouxe à vida
para entregá-lo à morte por minhas próprias mãos, levem o pai, eu fico
aqui. A irmã veio para ela e perguntou-lhe, Preferes assistir, um ano
atrás de outro, à sua agonia, Tens três filhos com saúde, falas de farta, o
teu filho é como se fosse meu, se é assim, leva-o tu, eu não posso, E eu
não devo, seria matá-lo, Qual é a diferença, Não é o mesmo levar à
morte e matar, pelo menos neste caso, tu és a mãe desse menino, não eu,
serias capaz de levar um dos teus filhos, ou todos eles, Penso que sim,
mas não o poderei jurar, Então a razão tenho-a eu, se é assim que
queres, espera-nos, nós vamos levar o pai. A irmã afastou-se, agarrou a
mula pela brida e perguntou, Vamos, o marido respondeu, Vamos, mas
devagar, não quero que se me caia. Alua, cheia, brilhava. Em algum
lugar, adiante, encontrava-se a fronteira, essa linha que só nos mapas é