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Bang! Acabaram de atirar uma cadeira contra a parede. Sendo assim, estamos condenados. O meu caso é igualmente dúbio. Não estarei eu a deixar-me levar por emoções injustificadas? Sim, quando me debruço à janela e deixo cair o cigarro, fazendo-o girar levemente até poisar no chão, sinto que o Louis está também a observá-lo. E diz: “Isso significa qualquer coisa. Mas quê?”.

– As pessoas continuam a passar – disse Louis. – Estão sempre a passar frente à janela deste restaurante. Automóveis, carrinhas, autocarros; e mais uma vez autocarros, carrinhas, automóveis, todos passam pela janela. Como pano de fundo, apercebo-me da existência de lojas e casas, e também das espirais cinzentas de uma igreja. Bem à minha frente encontram-se prateleiras de vidro onde repousam pratos carregados de bolos de leite e sandes de fiambre. Tudo isto é como que tornado difuso pelo vapor que se eleva de um bule de chá. Bem no centro do restaurante paira um cheiro gorduroso a carne de vaca e carneiro, a salsichas e a papas. Encosto o livro a uma garrafa de molho de Worcester e tento parecer-me com todos os outros.

Porém, nunca o consigo. (Eles continuam a passar, continuam a passar numa procissão desordenada.) Não consigo ler, nem mesmo pedir que me tragam a carne, com um mínimo de convicção. Estou sempre a repetir “Sou um inglês médio; sou um funcionário público médio”, mas acabo sempre por olhar para o homem sozinho da mesa ao lado para me certificar do que ele faz. De rostos flexíveis e peles elásticas, a multiplicidade das sensações com que se debatem fazem-nos estar constantemente a estremecer. Semelhantes a macacos, bastante engordurados como convém à situação. Enche demasiado a sala a um deles. Vendo-o por dez libras. As pessoas continuam a passar; continuam a passar recortando-se contra as espirais da igreja e as sandes de fiambre. A linha condutora dos meus pensamentos é profundamente afectada por esta desordem. É por isso que não me consigo concentrar no jantar. “Vendo-o por dez libras. É um móvel bonito mas enche-me demasiado a sala.” Precipitam-se para as águas como mergulhões com as penas escorregadias devido ao óleo. Todos os excessos que estão para além daquela norma podem ser considerados como vaidade. É isto o meio-termo; é isto a média. Enquanto isso, os chapéus não param de balançar para baixo e para cima; a porta não pára de se abrir e fechar. Tenho consciência do fluxo, da desordem; do aniquilamento e do desespero. Se isto é tudo, então não vale a pena. Mesmo assim, não deixo de sentir o ritmo do restaurante. É como se de uma valsa se tratasse, rodopiando, sempre a rodopiar. As criadas, balançando travessas, não param de girar leite-creme; entregam-nos na altura certa, ao cliente certo. Os indivíduos normais, incluindo o ritmo delas nos seus próprios ritmos (“Vendo-o por dez libras; aquilo está-me a encher a sala”) aceitam as saladas, os damascos, os pratos de leite-creme. Onde estará, pois, a brecha dentro de toda esta continuidade? Através de que fissura poderemos nós antecipar a catástrofe? O círculo não se quebra; a harmonia está completa. É aqui que se situa o ritmo central; é aqui que se encontra a mola comum. Vejo-a expandir e contrair, apenas para de pronto voltar a se expandir. Contudo, estou de fora. Se falo, imitando a sua pronúncia, ficam de orelhas arrebitadas, à espera que volte a falar, pois estão desejosos de saber de onde venho – se do Canadá se da Austrália. Eu, que acima de tudo desejo ser amado, sou um estranho, uma criatura que não pertence ao meio. Eu desejaria sentir fechar-se sobre mim as ondas protectoras da vulgaridade, consegui ver pelo canto do olho um qualquer horizonte distante; apercebo-me de um mar de chapéus agitando-se para cima e para baixo, numa desordem permanente. É a mim que se dirigem as queixas dos espíritos errantes dos distraídos (uma mulher de dentes estragados tropeça junto ao balcão). “Leva-nos de volta ao rebanho, a nós, que caminhamos de forma tão dispersa, baloiçando-nos para cima e para baixo, tendo como pano de fundo vitrinas com pratos de sandes de fiambre. Sim, acabarei por vos reduzir à ordem.

Vou ler o livro que está encostado à garrafa de molho de Worcester. Trata-se de um livro com alguns anéis bastante apertados, algumas afirmações perfeitas, poucas palavras, mas poesia. Vós, todos vós, ignoram-no. Já se esqueceram do poeta morto. E eu não as posso traduzir para vós de forma a que o poder que delas emana vos faça ver com clareza a falta de objectivos que vos caracteriza; o quanto o vosso ritmo é barato e inútil; removendo assim aquela degradação que, a não se aperceberem da vossa falta de objectivos, vos tornará senis mesmo quando jovens. A minha missão será traduzir este poema de forma a torná-lo acessível a todos. Eu, o companheiro de Platão e de Virgílio, também baterei à porta de painéis de carvalho. Não me submeterei a este desfile inútil de chapéus de coco e cartolas, bem assim como a todas as plumas que ornamentam as cabeças das mulheres. (A Susan, a quem tanto respeito, limita-se a usar um chapéu de palha durante o Verão, quando o sol é forte.) E os grãos de vapor que escorrem em gotas desiguais pelo caixilho da janela; e as paragens e os arranques bruscos dos autocarros; e os tropeções junto ao balcão; e as palavras que vagueiam de forma lúgubre e sem qualquer sentido humano; tudo isto porei em ordem.

As minhas raízes atravessam veios de chumbo e prata, locais úmidos e pântanos que exalam odores, até atingirem um nó feito de raízes de carvalho, bem no centro do mundo. Surdo e cego, com os ouvidos cheios de terra, mesmo assim escutei rumores de guerras; e também de rouxinóis; senti o som dos passos de inúmeras colunas de soldados precipitando-se em defesa da civilização, mais ou menos como se fossem aves migratórias em busca do Verão; vi mulheres transportando ânforas vermelhas até às margens do Nilo. Acordei num jardim, com uma pancada na nuca e um beijo quente; era a Jinny. Lembro-me de tudo isto como alguém que se lembra de gritos confusos e do desmoronar de colunas negras e vermelhas no decorrer de um qualquer confronto nocturno. Não paro de dormir e de acordar. Ora durmo; ora acordo. Vejo o bule de chá; as vitrinas repletas de sandes de um amarelo-pálido; os homens de casacões compridos empoleirados nos bancos junto ao balcão; e também, bem atrás deles, a eternidade. Trata-se de uma imagem que me foi gravada na carne por um homem encapuzado empunhando um ferro em brasa. Vejo este restaurante recortar-se contra as asas multicoloridas das aves que pertencem ao passado. É por isso que comprimo os lábios, que tenho uma palidez doentia; é daí que vem o meu aspecto pouco simpático e a amargura com que viro o rosto na direcção do Bernard e do Neville, que passeiam por entre os teixos, que herdam cadeiras de baloiço; e que correm as cortinas para que a luz das lâmpadas incida sobre os livros que estão a ler.

A Susan merece o meu respeito porque sabe coser. Está sentada a costurar à luz de uma pequena lâmpada, numa casa onde os campos de milho chegam quase até à janela, facto que me dá bastante segurança. O certo é que sou o mais fraco e o mais novo de todos eles. Sou uma criança que olha para os pés e para os pequenos canais que a água abriu no cascalho. Digo para mim mesmo que isto é um caracol e aquilo uma folha. Delicio-me com os caracóis; delicio-me com as folhas. Serei sempre o mais jovem, o mais inocente, o mais crédulo. Vocês estão todos protegidos. Eu estou nu. Quando a empregada se desloca, é para vos entregar os damascos e o leite-creme sem qualquer hesitação, como uma irmã. Vocês são seus irmãos. Mas quando me levanto, sacudindo as migalhas do sobretudo, coloco uma gorjeta demasiado elevada, um xelim, bem debaixo do prato, pois assim ela só a poderá encontrar depois de eu ter saído, e o seu desprezo, revelado por uma gargalhada, só me poderá atingir depois de eu ter passado as portas de vaivém.