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Neste momento ouço um carro parar. Faz-se luz numa faixa do pavimento. A porta vai-se abrindo e fechando. As pessoas estão a chegar; não falam; limitam-se a entrar. Ouço o som sibilante provocado pelas capas deslizando pelos ombros dos que as despem. Trata-se do prelúdio, do princípio. Olho, espreito, espalho pó no rosto. Tudo está certo; devidamente preparado. O meu cabelo descreve uma curva. Os meus lábios têm o devido tom de vermelho. Estou pronta a me juntar aos homens e mulheres que percorrem a escada, os meus pares. Passo por eles e exponho-me aos seus olhares do mesmo modo que eles se expõem ao meu. Semelhantes a relâmpagos, olhamo-nos sem mostrar sinais de reconhecimento ou de que estamos dispostos a abrandar. A comunicação é feita através dos corpos. É este o meu chamamento. É este o meu mundo. Tudo está pronto e decidido; os criados, sempre, sempre presentes, pegam no meu nome, no meu nome fresco e desconhecido, e lançam-no à minha frente. Entro.

Cá estão as cadeiras douradas nas salas vazias e como que à espera, e flores (maiores e muito mais paradas que as naturais) recortando-se contra as paredes em manchas verdes e brancas. Foi com tudo isto que sonhei; foi tudo isto que pressagiei. Pertenço a este mundo. Piso com naturalidade as carpetes espessas. Deslizo com facilidade por sobre os soalhos encerados. Sob esta luz, sob este cheiro, começo a me desdobrar, semelhante a um feto, cujas folhas se vão desdobrando aos poucos. Paro. Tomo consciência deste mundo. Entre as formas brilhantes das mulheres, verdes, cor-de-rosa, cinzento-pérola, encontram-se os corpos direitos dos homens. Estão vestidos de preto e branco; estão como que ocultos por detrás das roupas. Volto a ver a imagem de um túnel reflectida na janela. Aquela acaba por se mover. À medida que avanço, as figuras pretas e brancas daqueles homens desconhecidos seguem-me com os olhos; quando me viro para olhar para um quadro, viram-se também. As suas mãos como que esvoaçam em direcção aos laços que usam no pescoço. Tocam nos coletes, nos lenços de assoar. São muito jovens. Estão desejosos de causar boa impressão. Sinto nascer em mim milhares de capacidades. Sou maliciosa, alegre, lânguida, melancólica. Apesar de estar como que enraizada, sinto-me flutuar. Com um aspecto completamente dourado, flutuo naquela direcção e digo a este indivíduo: “Vem”. Ao me encolher, digo “Não” àquele outro. Há um que se afasta do grupo que se encontra debaixo do camarim de vidro. Aproxima-se. Vem na minha direcção. Trata-se do momento mais excitante que alguma vez vivi. Flutuo. Ondulo. Estendo-me como uma planta aquática, ora nesta ora naquela direcção, mas sempre presa a um ponto fixo, pois só assim ele poderá vir ao meu encontro. “Vem”, digo, “vem”. Pálido, de cabelo escuro, aquele que se aproxima é melancólico, romântico. E eu mostro-me maliciosa, volúvel e caprichosa, precisamente porque ele é melancólico e romântico. Cá está ele, mesmo ao meu lado.

Agora, com um ligeiro puxão, mais ou menos como uma lasca que é arrancada a uma pedra, sou arrastada: caio junto com ele; sou levada para longe. Deixamo-nos levar por esta doce corrente. Saímos e entramos ao som desta música hesitante. As pedras impedem agora o deslize da corrente da dança; esta agita-se, estremece. Acabamos por ser compelidos a nos juntar a esta enorme figura. Ela mantém-nos juntos; não nos conseguimos escapar das suas paredes sinuosas, hesitantes, abruptas. Os nossos corpos, forte o dele, leve o meu, são forçados a se manter dentro deste corpo. Depois, como que para nos dar a ilusão de espaço, toma-nos nas suas dobras sinuosas e embala-nos de um lado para o outro. De súbito, a música pára. Apesar disso, o meu sangue não pára de correr. A sala gira em meu redor.

Acaba por parar.

Anda, vamos passear por entre as cadeiras douradas. O corpo é mais forte do que aquilo que pensava. Estou mais tonta do que o que era suposto estar. Ninguém mais me interessa a não ser este homem, cujo nome desconheço. Lua, achas que somos aceitáveis? Não seremos nós encantadores, eu de cetim ele de preto e branco? Os meus iguais bem me podem agora olhar. Encaro-vos bem de frente, homens e mulheres. Pertenço ao vosso mundo. O vosso mundo é o meu. Pego agora neste cálice esguio e bebo um gole do seu conteúdo. O vinho tem um sabor drástico, ácido. Sou obrigada a estremecer enquanto bebo. Aromas e flores, luz e calor, tudo aqui se concentra num líquido amarelo, fogoso. Mesmo por trás das minhas costas, qualquer coisa seca e de olhos muito grandes, fecha-se sobre si mesma, embalando-se suavemente até adormecer.

Chama-se a isto êxtase, alívio. A alavanca que me impedia de falar abranda a pressão que exercia. As palavras agrupam-se e acabam por jorrar, umas a seguir às outras. A ordem é perfeitamente arbitrária. É como se saltassem para os ombros umas das outras. Os seres sós e solitários tropeçam e transformam-se em muitos. Não interessa o que digo. Semelhante a uma nave a esvoaçar, uma frase atravessa o espaço vazio que se estende entre nós. Acaba por poisar nos lábios dele. Volto a encher o copo. Bebo. Desce um véu entre nós. Encontro espaço no calor e na privacidade de uma outra alma. Encontramo-nos ambos num ponto muito alto, num qualquer desfiladeiro a pino. Melancólico, ele deixa-se ficar no ponto mais elevado do trilho. Inclino-me. Pego numa flor azul e, em bicos dos pés para o poder alcançar, prendo-lha no casaco. Pronto! Trata-se do meu momento de êxtase. E agora já passou.

Invadem-nos a preguiça e a indiferença. As pessoas continuam a passar. Perdemos consciência dos nossos corpos unidos, ocultos por sob a mesa. Também gosto de homens louros, de olhos azuis. A porta abre-se. A porta não pára de se abrir. Digo para mim mesma que, da próxima vez que ela se abrir, o curso da minha vida mudará. Quem é que acaba de entrar? Oh, trata-se apenas de um criado carregado de copos. Aquele é já um senhor de idade – junto a ele não passaria de uma criança. Aquela é uma grande dama – a seu lado teria de fingir.

Vejo algumas raparigas da minha idade, em relação às quais sinto um antagonismo respeitável. Estou entre os meus. Pertenço a este mundo. É neste facto que reside o meu risco, a minha aventura. A porta abre-se. Oh, vem, digo eu a este, emitindo sinais dourados com todo o corpo. “Vem”, e ele aproxima-se de mim.

– Mover-me-ei por trás deles – disse Rhoda –, como se tivesse visto alguém conhecido. Contudo, não conheço ninguém. Afastarei a cortina para ver melhor a Lua. O esquecimento acalmará a agitação em que me debato. A porta abre-se; o tigre salta. A porta abre-se; o terror esgueira-se por entre ela; terror e mais terror, perseguindo-me. Melhor será visitar às escondidas os tesouros que separei. No outro lado do mundo, há colunas reflectidas em lagos. As andorinhas mergulham as asas nos lagos escuros. Contudo, a porta não pára de se abrir e as pessoas vão entrando; avançam todas na minha direcção. Com sorrisos falsos, destinados a disfarçar a crueldade, a indiferença, apoderam-se de mim. A andorinha molha as asas; a Lua passeia solitária através de oceanos azuis. Sou obrigada a lhes apertar a mão; sou obrigada a responder. Mas que resposta deverei dar? Sou obrigada a usar este corpo desajeitado, sem graça, e a aceitar as suas manifestações de desprezo, de indiferença, eu, que sonho com colunas de mármore e lagos situados no outro lado do mundo, onde as andorinhas molham as asas.

A noite escureceu um pouco mais os contornos das chaminés. Do lado de fora, por sobre o ombro do meu companheiro, vejo um gato, ligeiro, à vontade, sem estar inundado em luz, sem estar preso em seda, livre para parar, para se espreguiçar, para voltar a andar. Odeio todos os pormenores da vida individual. Contudo, sou obrigada a escutá-los. Sinto em mim uma enorme pressão. Não me posso mover sem deslocar o peso de séculos. Sinto-me espicaçada por um milhão de setas. O desprezo e o sentido do ridículo não param de me dar alfinetadas. Eu, que seria capaz de enfrentar o granizo, e, com toda a alegria, deixar o granizo sufocar-me, estou como presa neste local; sinto-me exposta. O tigre salta. As línguas, semelhantes a chicotes, não param de me atingir. Ágeis, incessantes, não param de me bater. Tenho de fingir e mantê-los à distância com mentiras. Qual será o amuleto capaz de me proteger deste desastre? Que rosto poderei invocar para apagar este incêndio. Penso nos rótulos das caixas; em mães de cujos joelhos largos as saias se espalham; em clareiras onde desembocam os caminhos íngremes das montanhas. Escondam-me, grito, pois sou a mais nova, a mais desprotegida de todos vós. A Jinny sente-se tão à vontade como uma gaivota cavalgando as ondas, distribuindo olhares à esquerda e à direita, dizendo isto e aquilo, mas sempre com convicção. Enquanto isso, eu vejo-me obrigada a mentir.