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Quando estou só, balanço as minhas taças; sou dona e senhora da minha frota de navios. Porém, aqui, a virar as pregas das cortinas de brocado da minha anfitriã, sinto-me repartida em mil pedaços; deixei de ser una. De que será então feita a sabedoria que a Jinny demonstra ao dançar; a certeza revelada pela Susan quando, inclinando-se suavemente junto ao candeeiro, enfia a linha de algodão branco através do buraco da agulha? Elas dizem Sim; elas dizem Não; eles batem com os punhos na mesa. Mas eu tenho dúvidas; estremeço; vejo a sombra do espinheiro selvagem projectar-se no deserto.

Tal como se tivesse um fim em vista, vou atravessar a sala até chegar à varanda por baixo do toldo. Vejo o céu, a que o luar confere uma aparência suave. Observo igualmente os contornos da praça e os dois indivíduos sem rosto que se recortam como estátuas contra o firmamento. Trata-se, pois, de um mundo imune a mudanças. Ao passar por esta sala repleta de línguas que me cortam como se fossem facas, fazendo-me gaguejar, levando-me a mentir, encontrei rostos sem feições, despojados de beleza. Os casais de namorados ocultam-se por entre as árvores. O polícia está de sentinela a uma esquina. Um homem passa. Trata-se de um mundo imune a mudanças. Todavia, ainda não me recompus o suficiente, apoiada em bicos de pés junto à lareira, afogueada devido ao ar quente, com medo que a porta se abra e o tigre salte, com medo até de formar uma frase. Tudo o que digo está sujeito a ser permanentemente contrariado. Sou interrompida de cada vez que a porta se abre. Ainda não fiz os vinte e um. Estou destinada a ser despedaçada. Estou destinada ao ridículo. Estou destinada a vogar ao sabor das línguas de todos estes homens e mulheres de rostos contraídos, tal como se fosse um pedaço de cortiça a boiar num mar encapelado. Semelhante a uma alga, sou atirada para longe de cada vez que a porta se abre. Sou a espuma que cobre de branco os contornos das rochas, até mesmo os mais recônditos; aqui, nesta sala, também sou uma rapariga. Depois de ter abandonado as almofadas verdes onde se reclinava, espreitando furtivamente através das jóias marinhas, o Sol mostrou o rosto e olhou de frente para as ondas. Estas caíam a um ritmo regular. Caíam provocando um som semelhante ao dos cascos dos cavalos na turfa. Os salpicos por si provocados elevavam-se como lanças empunhadas por sobre as cabeças dos cavaleiros. Enchiam a praia com as suas águas de um azul metalizado, salpicadas de brilhos cor de diamante. Recuavam e avançavam com a força, a energia, de uma máquina que não pára de trabalhar. O Sol incidia nos campos de milho e nos bosques. Os rios tornaram-se azuis e como que adquiriram muitas dobras, os relvados que se estendiam até à beira-mar adquiriram uma coloração tão verde como a das penas das aves esvoaçando à brisa matinal. As encostas curvas e contraídas, davam a sensação de estarem a ser puxadas por tenazes, mais ou menos como os músculos envolvem os membros; e os bosques, orgulhosamente eriçados nos seus flancos, lembravam as crinas dos cavalos quando são cortadas rente.

No jardim, onde as árvores se erguiam frondosas por cima dos canteiros, dos charcos e das estufas, os pássaros cantavam ao sol, cada um por si mesmo e não em coro. Um cantava por baixo da janela do quarto; outro, no ramo mais alto do lilás; outro ainda, empoleirado no muro. Todos cantavam de forma estridente com paixão, com veemência, como se para deixarem o canto explodir, em nada se importando com o facto de arruinarem as melodias das outras aves. Os seus olhos redondos brilhavam de excitação; as patas agarravam-se com força aos ramos e aos parapeitos. Cantavam, expostas e sem qualquer tipo de abrigo, ao ar e ao sol, belíssimas na sua nova plumagem, estriada ou sarapintada como as conchas, aqui manchada de azul claro, ali salpicada de dourado, aqui e ali com uma simples pena a destoar do conjunto. Cantavam como se a própria manhã as levasse a isso. Cantavam como se os contornos afiados da existência as obrigassem a quebrar a doçura da luz azul esverdeada; a umidade da terra empapada lança emanações e exalações provenientes dos vapores oleosos da cozinha; o odor quente da carne de carneiro e de vaca; a riqueza dos doces e das frutas; os restos moles e as cascas provenientes do caixote do lixo, sobre as quais pesava uma espécie de vapor pesado e lento. Era sobre todas estas coisas encharcadas, manchadas e encarquilhadas devido à umidade, que as aves se lançavam, abruptas, impiedosas, de bico aberto. De repente, sem que nada o fizesse prever, como que se atiravam dos lilases e das vedações. Observavam os caracóis somente para depois lhes partirem a casca de encontro a uma pedra. Batiam com fúria, metodicamente, até a casca se partir e qualquer coisa de viscoso jorrar da fenda. Batiam de novo as asas e elevavam-se nos ares, emitindo notas curtas e agudas, até acabarem por se empoleirar nos ramos superiores de uma qualquer árvore, de onde se deixavam ficar a observar as folhas e as espirais que se encontravam mais abaixo, bem assim como o solo coberto de botões brancos, ervas que flutuavam ao vento, e o mar, batendo contra a praia, com um ritmo semelhante ao de um tambor, que faz avançar um regimento de soldados envergando turbantes enfeitados de plumas. De vez em quando, as suas vozes uniam-se em escalas melodiosas, tal como acontece com os vários cursos de água que percorrem as montanhas e que, ao se unirem, provocam uma corrente de espuma antes de se precipitarem cada vez mais depressa ao longo do mesmo canal, arrastando consigo todas as folhas que encontram. No entanto, acabam por bater contra uma pedra; dividem-se.

Dentro de casa, o sol penetrava em colunas de contornos bem delineados. Tudo aquilo em que a luz tocava adquiria uma existência fanática. Os pratos transformavam-se em lagos brancos. As facas aparentavam ser punhais de gelo. Sem que nada o fizesse prever, os copos pareciam estar suspensos em raios de luz. Cadeiras e mesas subiam à superfície como se tivessem estado debaixo de água, e, ao se elevarem, era como se estivessem envoltas num véu de cores, vermelho, laranja, púrpura, mais ou menos como a casca de um fruto maduro. Os veios que sulcavam as louças, os poros da madeira, as fibras dos tapetes, tudo se tornava mais nítido e como que melhor gravado nos objectos a que pertenciam.

Coisa alguma possuía sombra. Uma determinada jarra era de tal forma verde, que os olhos que a fitavam eram como que sugados através de um canal devido à sua intensidade, ficando a ela agarrados como lapas às rochas. Só então as formas indistintas ganhavam consistência. Via-se aqui o bojo de uma cadeira; ali, o volume de um armário. E, à medida que a luz aumentava, arrastava à sua frente os bandos de sombras que antes ali haviam reinado, agrupando-os e suspendendo-os no pano de fundo que suportava toda a cena.

– Que pálida, que estranha – disse Bernard – é a cidade de Londres com todas as suas torres e cúpulas, repousando sob o nevoeiro. Guardada por gasômetros e chaminés de fábricas, a nossa aproximação não lhe perturba o sono. Ela aperta o formigueiro contra o peito. Todos os gritos e clamores estão suavemente envolvidos em silêncio. Nem a própria Roma tem um ar mais majestoso. Mesmo assim, é para lá que nos dirigimos. A sua sonolência maternal começa já a dar mostras de não ser muito natural. Por entre o nevoeiro elevam-se colinas cobertas de casas. Fábricas, catedrais, cúpulas de vidro, instituições e teatros, tudo isto surge perante os nossos olhos. O primeiro comboio da manhã, vindo do Norte, dirigiu-se na sua direcção como se fosse um míssil. Afastamos a cortina para observar a paisagem. Rostos vazios e expectantes olham-nos quando passamos pelas estações a grande velocidade. Como se antevissem a morte ao sentirem a deslocação de ar por nós provocada, os homens agarram-se aos jornais com um pouco mais de força. Estamos prestes a explodir nos flancos da cidade, do mesmo modo que uma granada o faz junto ao corpo de um animal majestoso, maternal. A cidade zumbe e sussurra; está à nossa espera.