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É então que os raios começam a flutuar na nossa direcção, trazendo-nos novas correntes de sensações. Mudamos. O Louis leva a mão à gravata. O Neville, que revela sinais de quem sofre uma profunda agonia, endireita os talheres que estão à sua frente, isto não sem algum nervosismo. A Rhoda olha-a, surpreendida, como se visse um incêndio alastrar num campo distante. E eu, muito embora tente pensar em erva e campos úmidos, no som da chuva a bater no telhado e nas rajadas de vento que abanam a casa no Inverno, tentando assim proteger a alma contra ela, sinto-me cercada pela energia que dela se desprende, sinto as suas gargalhadas enrolarem-se à minha volta com línguas de fogo a queimarem-me sem dó nem piedade o vestido gasto, as unhas cortadas rente, de tal forma que me vejo obrigada a escondê-las debaixo da toalha.

– Ele não vem – disse Neville. – A porta não pára de se abrir e ele não chega. Quem lá vem é o Bernard. Como seria de esperar, ao tirar o casaco levanta os braços de tal maneira, que qualquer um lhe pode ver os sovacos. E, ao contrário do que se passou com todos nós, vai andando sem precisar de abrir porta alguma, sem sequer se aperceber de que entrou numa sala repleta de desconhecidos. Não olha para o espelho. Está despenteado, mas nem sequer se apercebe do facto. Não vê que somos diferentes nem que é para esta mesa que se deve dirigir. Hesita durante breves instantes. Quem será aquela?, pergunta ele em voz baixa, pensando reconhecer uma mulher embrulhada numa capa, daquelas com que se costuma ir à ópera. O certo é que ele pensa sempre que conhece toda a gente, quando a verdade é que conhece ninguém (estou a compará-lo ao Percival). Contudo, ao nos reconhecer, esboça um aceno benevolente; inclina-se com tanta bondade, com tanto amor pela humanidade (ao que se mistura um pouco de troça pela futilidade de amar a humanidade), que, se não fosse o Percival que transforma tudo isto em vapor, seria capaz de me juntar aos outros e achar, tal como eles o fazem, que esta festa é nossa, que finalmente estamos todos juntos. Todavia, sem o Percival as coisas carecem de solidez. Somos silhuetas, fantasmas ocos a pairar sem qualquer pano de fundo que nos sirva de suporte.

– A porta de vaivém não pára de se abrir – disse Rhoda.

Por ela vão entrando estranhos, indivíduos que nunca mais veremos, indivíduos que nos tocam de forma desagradável com a sua familiaridade e indiferença, bem assim como com a ideia de que o mundo vai continuar mesmo sem a nossa presença. Somos incapazes de nos afundar, de esquecer os rostos que possuímos. Mesmo eu, que nunca mudo de expressão (a Susan e a Jinny alteraram os rostos e os corpos quando entraram), sinto-me flutuar, sem possuir um porto onde ancorar, incompleta, incapaz de construir uma câmara de vácuo, um muro, onde possa colocar estes corpos em movimento. Creio que tudo isto se deve ao Neville e à tristeza que dele emana.

Sinto-me abalada pela profunda desolação em que está mergulhado. Nada pode assentar. Nada pode ser fixado. De cada vez que a porta se abre ele olha fixamente para a mesa, nem sequer se atreve a levantar os olhos, acaba por espreitar durante breves segundos, e diz: “Ele não vem!”. Porém, ei-lo que chega.

– Agora – disse Neville –, a minha árvore floresce. O meu coração eleva-se. Acabaram-se as opressões e os impedimentos. O reino do caos chegou ao fim. Foi ele quem impôs a ordem. As facas voltaram a cortar.

– Lá está o Percival – disse Jinny. – Não se vestiu para a ocasião.

– Lá está o Percival – disse Bernard –, a ajeitar o cabelo.

Não se trata de um gesto de vaidade (nem sequer olha para o espelho), mas sim de algo para agradar ao deus da decência. É um indivíduo convencional; é um herói. Os rapazinhos mais novos marchavam atrás dele no campo de jogos. Mas, e apesar de assoarem o nariz do mesmo modo que ele, não tinham qualquer sucesso, pois só ele é o Percival. Agora, que está prestes a nos deixar, a partir para a Índia, todas estas pequenas coisas se juntam numa só. Estamos em presença de um herói. Oh, sim, ninguém o pode negar, e, quando se senta junto à Susan (a quem ama profundamente) a ocasião torna-se perfeita. Nós, que antes nos entretínhamos a lutar uns contra os outros, assumimos agora o ar sóbrio e confiante de soldados na presença do capitão. Nós, a quem a juventude separou (o mais velho ainda não fez vinte e cinco anos), que, semelhantes a aves sedentas, cantamos a plenos pulmões, e, com o egoísmo próprio dos jovens, batemos na nossa própria carapaça com tanta força que quase a chegamos a partir (estou noivo), ou, empoleirados no parapeito de uma qualquer janela solitária entoamos cânticos de amor e fama, coisa tão querida às avezinhas jovens de penugem amarela, acabamos por nos aproximar; e, em cima dos poleiros que ocupamos neste restaurante onde cada um tem os seus interesses e somos distraídos pelo desfile incessante dos copos e tentados por toda a espécie de coisas de cada vez que a porta se abre, é aqui sentados que sentimos o quanto nos amamos, acreditando também que somos consistentes e possuímos capacidade para resistir ao tempo.

– Resta-nos agora sair da obscuridade da solidão – disse Louis.

– Resta-nos agora dizer, de forma directa e brutal, o que nos vai na alma – disse Neville. – Longe está o período de isolamento e preparação; os dias furtivos da clandestinidade e dos segredos, das revelações inesperadas, dos momentos de terror e êxtase.

– A velha Mrs. Constable levantava a esponja e sentíamos o calor escorrer-nos pela pele – disse Bernard. – Sentíamo-nos envolvidos por estas novas roupas feitas de carne.

– O rapaz das botas fez amor com a criada, no jardim – disse Susan –, por entre os alguidares de roupa lavada.

– O modo como o vento respirava lembrava o arfar de um tigre – disse Rhoda.

– Havia um homem na valeta, lívido, com o pescoço cortado – disse Neville. – E, sempre que subia os degraus, não conseguia olhar para a madeira com as suas folhas prateadas.

– Sem que houvesse ninguém para a soprar, a folha não parava de se agitar – disse Jinny.

– No canto iluminado pelo sol – disse Louis –, as pétalas nadavam em profundezas de verde.

– Em Elvedon, os jardineiros não paravam de varrer, servindo-se para isso das suas enormes vassouras, e a mulher sentada à mesa não parava de escrever – disse Bernard.

– Agora, sempre que nos encontramos – disse Louis –, pegamos no novelo em que o passado se transformou e tentamos desenrolá-lo.

– Foi então – disse Bernard –, que o táxi surgiu frente à porta, e, enterrando com força os bonés para assim escondermos aquelas lágrimas muito pouco viris, acabamos por ser conduzidos por ruas onde até mesmo as criadas nos olhavam, e os nossos nomes escritos a branco nas malas proclamavam a todo o mundo que íamos para a escola, transportando connosco o número permitido de meias e cuecas, onde as nossas mães haviam bordado as nossas iniciais. Tratou-se de uma segunda separação do corpo da mãe.

– E havia também a Miss Lambert, já para não falarmos da Miss Cutting e da Miss Bard – disse Jinny. – Tratava-se de senhoras imponentes, de golas brancas; pálidas, enigmáticas, com anéis de ametista colocados em dedos muito esguios, os quais percorriam as páginas dos livros de francês, geografia e aritmética; e haviam ainda os mapas, os quadros de baeta verde, e as filas de sapatos na prateleira.

– As campainhas tocavam sempre a horas – disse Susan. – As raparigas não paravam de rir e de se acotovelar. As cadeiras produziam um barulho estranho quando as arrastavam no chão forrado a oleado. Contudo, num dos sótãos podia ver-se um ponto azul e distante correspondente a um campo não contaminado pela corrupção daquela existência irreal, regulamentada.