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– Os véus não paravam de cair por sobre as nossas cabeças – disse Rhoda. – Pegávamos nas flores e com elas construíamos grinaldas.

– Mudamos, tornámo-nos irreconhecíveis – disse Louis. – Expostos a todas estas luzes diferentes, aquilo que possuíamos dentro de nós (pois somos todos diferentes) veio aos poucos à superfície, em golfadas violentas, separadas por abismos vazios, tal como se um qualquer ácido tivesse caído de forma desigual numa determinada superfície. Eu fui isto, o Neville aquilo, o mesmo se passando com o Bernard e a Rhoda.

– Foi então que as canoas passaram através dos ramos levemente tingidos de amarelo – disse Neville –, e o Bernard, avançando de forma descontraída por entre os tufos verdes, contra casas de alicerces antiquíssimos, acabou por se deixar cair junto a mim. Num acesso de emoção, os ventos e os relâmpagos não podem ser mais rápidos, peguei no meu poema, atirei-lho, e fechei a porta atrás de mim.

– No entanto, e pela parte que me tocava – disse Louis –, deixando-vos partir, sentei-me no escritório, e, arrancando as páginas ao calendário, anunciei a todos os que ali iam que sexta, dia dez, ou terça-feira, dezoito, haviam amanhecido na cidade de Londres.

– Então – disse Jinny –, eu e a Rhoda, vestidas com os nossos vestidos mais bonitos e com algumas pedras preciosas a ornamentar os colares gelados que trazíamos ao pescoço, fizemos vénias, apertámos as mãos, e, sem nunca deixar de sorrir, tirámos uma ou outra sanduíche de uma enorme travessa.

– Do outro lado do mundo – disse Rhoda –, o tigre saltou e a andorinha mergulhou as asas nos lagos escuros.

– Mas agora estamos de novo juntos – disse Bernard. – Acabamos por nos juntar, nesta determinada altura, neste preciso local. O que nos faz aqui estar é uma emoção profunda e por todos partilhada. Será conveniente chamarmos-lhe amor? Deveremos dizer que sentimos amor pelo Percival, já que ele vai para a Índia?

Não, trata-se de um nome demasiado pequeno e específico. Não devemos deixar que os nossos sentimentos fiquem confinados a limites tão estreitos. Estamos todos juntos (uns vindos do Norte, outros do Sul, a Susan da sua quinta, o Louis do escritório onde trabalha) para realizarmos algo que, muito embora não seja duradouro – e, afinal, que é que o é? –, é visto ao mesmo tempo por muitos olhos. Há um cravo vermelho naquele vaso. Enquanto estávamos à espera, tratava-se de uma simples flor. Agora, transformou-se em algo com sete possíveis ângulos de observação, muitas pétalas vermelhas, rubras, algo como folhas possuidoras de estrias prateadas – uma flor completa à qual cada olho dá a sua contribuição.

– Depois dos fogos caprichosos e da horrível monotonia da juventude – disse Neville –, a luz acaba por cair em objectos reais. Somos facas e garfos. O mundo está arrumado, o mesmo se passando connosco, e só por isso podemos falar.

– As nossas diferenças talvez sejam demasiado profundas para serem explicadas – disse Louis. – Mas talvez não seja má ideia tentá-lo. Alisei o cabelo quando entrei, pois tentava tornar-me o mais parecido convosco quanto possível. Contudo, e dado não ser tão inteiro quanto vocês, trata-se de algo completamente impossível. Já vivi milhares de vidas. Desenterro uma todos os dias – escavo-a. Descubro relíquias de mim mesmo na areia que foi pisada pelas mulheres há milhares de anos, quando ouvia cânticos no Nilo e o animal encurralado batia as patas com força. Aquilo que têm à vossa frente, este homem, este Louis, é apenas o que resta de algo que já foi magnífico. Já fui um príncipe árabe – reparem na graciosidade dos meus gestos. Já fui um grande poeta no tempo da rainha Isabel. Fui duque na corte de Luís XIV. Sou muito vaidoso, muito confiante; sinto uma enorme vontade de fazer com que as mulheres suspirem por mim. Hoje, não almocei para que a Susan me considere cadavérico e a Jinny me conceda a bênção extravagante da sua simpatia. Mas, muito embora admire a Susan e o Percival, odeio todos os outros, pois é para eles que faço disparates como alisar o cabelo e tentar ocultar o sotaque.

Sou o macaquinho que faz muito barulho quando encontra uma noz; vocês são as mulheres desleixadas que transportam malas lustrosas carregadas de bolos bafientos; para mais, sou também o tigre enjaulado, e vocês são os guardas munidos de ferros em brasa. Ou seja, sou mais feroz e forte que vocês, e, contudo, aquilo que emerge à superfície depois de muitos séculos de não identidade será passado no maior dos horrores, não vão vocês rir-se de mim; esforçando-me por construir um anel de poemas comparável ao aço, o qual levará as gaivotas às mulheres de dentes estragados, as torres das igrejas aos bonés que vejo passar durante a hora do almoço, quando encosto o meu poeta preferido, será Lucrécio?, contra o galheteiro e o suporte da conta.

– Vocês nunca serão capazes de me odiar – disse Jinny. – Nunca serão capazes de me ver, mesmo que seja numa sala repleta de cadeiras douradas e embaixadores, sem de imediato atravessarem o aposento em busca da minha simpatia. Ainda agora, e assim que cheguei, tudo ficou em silêncio. Os criados pararam, os comensais levantaram os garfos e assim os mantiveram. Eu tinha ar de estar preparada para qualquer eventualidade. Quando me sentei, vocês ou levaram as mãos às gravatas ou as esconderam debaixo da mesa. Porém, eu nada tenho a esconder. Estou preparada. Sempre que a porta se abre grito Mais!. Contudo, são os corpos a minha imaginação. Nada mais consigo conceber para lá do círculo de luz provocado pelo meu próprio corpo. Este como que me precede, semelhante a uma lanterna descendo um carreiro escuro, fazendo com que todas as coisas, umas a seguir às outras, penetrem numa espécie de anel de luz. Faço-vos entontecer; levo-vos a acreditar que isto é tudo.

– Quando apareceste à porta – disse Neville –, fizeste com que tudo parasse, exigiste ser admirada, e isso constituiu um grande impedimento à forma livre como as coisas se devem relacionar. Apareceste à porta e obrigaste-nos a reparar em ti. Contudo, nenhum de vós me viu aproximar. Cheguei cedo; vim depressa e rapidamente para aqui, para assim me poder sentar junto à pessoa que amo. A minha vida possui a enorme rapidez que falta às vossas. Sou como um cão de caça a seguir um determinado odor. Caço desde o nascer ao pôr do Sol. Nada, nem a busca da perfeição, a fama ou o dinheiro, tem significado para mim. Possuirei grandes riquezas; serei famoso. No entanto, dado não possuir a agilidade corporal e a coragem que, por norma, costumam acompanhar as qualidades acima mencionadas, nunca conseguirei o que quero. O meu corpo não tem estrutura para suportar a rapidez com que penso. Falho antes de alcançar o que procuro e deixo-me cair, transformado em qualquer coisa sem forma, pegajosa, talvez mesmo revoltante. Sempre que passo por uma qualquer crise, inspiro piedade, e não amor. É por isso que sofro de forma horrível. Mesmo assim, e ao contrário do Louis, não transformo o que sinto num espectáculo. Sou demasiado realista para me dar ao luxo de participar numa farsa deste tipo. Vejo tudo, excepto uma coisa, com a maior das clarezas. É por isso que me salvo. É isso que transforma o meu sofrimento em qualquer coisa de excitante e incessante. É isso que me orienta, mesmo quando nada digo. E, dado que, pelo menos até um certo ponto, não tenho contornos definidos (a pessoa que sou muda constantemente, se bem que o mesmo não se passe no plano dos desejos), nunca começo o dia a saber de antemão com quem vou jantar. É isso que faz com que nunca estagne; que me erga mesmo depois dos piores desastres. Volto-me; mudo. Os seixos ressaltam ao embater na couraça que me reveste os músculos, o corpo. E assim acabarei por envelhecer.

– Se ao menos conseguisse acreditar – disse Rhoda –, que serei capaz de envelhecer em busca de algo e em constante metamorfose, então libertar-me-ia do medo que sinto: nada existe para sempre. Um determinado momento não conduz forçosamente a outro. A porta abre-se e o tigre salta. Vocês não me viram entrar. Fiz questão de passar por entre as cadeiras para evitar o horror do salto. Tenho medo de todos vocês.