Выбрать главу

Tenho medo do choque provocado pelas sensações que sobre mim se abatem, pois não posso lidar com elas do mesmo modo que vocês – sou incapaz de fazer com que um momento se funda noutro. Para mim, são todos violentos, separados; e, se me deixar derrubar pelo choque do salto efectuado pelo momento, vocês cair-me-ão em cima, acabando por me despedaçar. Não tenho qualquer objectivo em vista. Não sei correr de minuto a minuto, de hora a hora, misturando-os através de uma qualquer força natural até constituírem aquela massa indivisível a que vocês chamam vida. Dado terem um objectivo em vista, será sentarem-se junto a alguém, será uma ideia, será uma beleza? (não sei), os vossos dias e as vossas horas passam com a doçura dos ramos das árvores que se vão baloiçando ao vento, e com a suavidade do verde das florestas, por onde os cães de caça vão perseguindo um determinado odor. Contudo e no que me diz respeito, não há um único cheiro, um único ser a quem possa seguir. Para mais, não possuo rosto. Sou como a espuma que passa a rasar pela areia, ou como um raio de luar, que ora cai nesta lata vazia ora neste fio de alga, ou ainda num osso ou numa embarcação semicarcomida. Sou transportada para o interior das grutas e comprimida contra as paredes dos corredores como se fosse papel, e tenho de pressionar a mão, libertar a parede com toda a força, pois só assim me puxarei de volta. Mas, e dado que aquilo que mais quero é encontrar um refúgio, finjo ter um objectivo em vista, e lá vou subindo as escadas, atrás da Jinny e da Susan. Vejo-as puxar as meias e faço o mesmo às minhas. Deixo-vos falar primeiro e depois imito-vos. Vim até aqui, a este preciso lugar, não para te ver, a ti, a ti, ou a ti, mas para atear a chama que em mim existe na fogueira de todos os que vivem como um todo, de forma indivisível, sem uma preocupação.

– Esta noite, quando aqui cheguei – disse Susan –, parei e examinei tudo com os olhos colados ao chão, como se fosse um animal. O cheiro das carpetes, da mobília e dos perfumes enjoa-me. Gosto de passear sozinha pelos campos úmidos, ou de parar junto ao portão e ver o meu setter farejar em círculo como que a perguntar: “Onde é que está a lebre?”. Gosto de estar junto de quem anda sempre com uma erva nas mãos, cospe para o lume, e, de chinelos, tal como o meu pai, se vai arrastando ao longo dos caminhos. As únicas coisas que compreendo são gritos de amor, ódio, raiva e dor. Toda esta conversa é como despir uma velha cujo vestido parecia fazer parte dela, mas agora, à medida que falamos, a criatura vai revelando uma pele avermelhada, as ancas encarquilhadas, e os peitos descaídos. Voltam a ser belos assim que se calam. Nunca possuirei outra coisa para além de felicidade natural. Bastará isso para me contentar. Irei cansada para a cama. Serei como um campo cujas colheitas vão aumentando; no Verão, o sol aquecer-me-a; no Inverno, a geada fará com que fique queimada. Contudo, o frio e o calor seguir-se-ão de forma natural, sem que eu tenha qualquer coisa a ver com o facto. Os filhos dar-me-ão continuidade; as suas dores de dentes, os seus choros, as suas idas e vindas da escola serão como as ondas do mar que se estende a meus pés. O seu movimento perpetuar-se-á para todo o sempre. As estações do ano farão com que me eleve mais de qualquer um de vós. Quando morrer, possuirei muito mais do que a Jinny ou a Rhoda. Por outro lado, onde vocês são múltiplos e se unem às ideias e às gargalhadas dos outros, serei solene, sombria, sem apresentar diferenças de coloração. A paixão da maternidade, bela e animal, acabará por me desgastar. Farei tudo, até mesmo as maiores baixezas, para melhor orientar a sorte dos meus filhos. Odiarei todos os que descobrirem as suas falhas. Deixarei que construam um muro entre eu e vocês.

Para mais, a inveja já me começou a atormentar. Odeio a Jinny porque ela me faz ver que tenho as mãos vermelhas e as unhas roídas. Amo com tanta violência, que me sinto morrer quando o objecto do meu amor revela através de uma simples frase que tem poderes para me escapar. Ele escapa-se e eu fico agarrada a um fio que não pára de subir e descer por entre as folhas das copas das árvores. Não compreendo frases.

– Se ao nascer ainda não soubesse que a uma palavra se segue outra – disse Bernard –, talvez, quem sabe?, pudesse ter sido qualquer coisa. Dado que assim não foi e encontro sequências por toda a parte, não suporto o peso da solidão.

Sempre que não vejo as palavras circularem à minha volta quais anéis de fumo, sinto-me na escuridão, nessas alturas, nada sou. Quando estou só, deixo-me cair na letargia e digo para mim mesmo enquanto espevito as brasas, que a Mrs. Moffat acabará por chegar e varrer tudo. Quando o Louis está só, as coisas surgem-lhe perante os olhos com uma intensidade incrível, o que lhe permite escrever palavras que talvez nos sobrevivam. A Rhoda ama a solidão. Receia-nos porque a fazemos perder a noção de ser, que se manifesta com grande intensidade quando não está ninguém por perto, reparem como ela pega no garfo, a sua arma contra nós. No entanto, eu só existo quando o canalizador, o comerciante de cavalos, ou seja lá quem for, diz qualquer coisa que me desperta para a vida. É então que o fumo que se eleva da minha frase se torna maravilhoso, subindo e descendo, flutuando e envolvendo as lagostas vermelhas e os frutos amarelos, tornando-os maravilhosos. Todavia, reparem só na falsidade desta frase, construída de evasivas e velhas mentiras. É por isso que o meu carácter é em grande parte constituído pelos estímulos que me são fornecidos pelos outros, não me pertencendo do mesmo modo que a vossa personalidade vos pertence. Existe uma linha fatal, um qualquer veio de prata, irregular e sem rumo certo, a enfraquecê-la. Era precisamente por isso que o Neville tanto se irritava comigo no tempo em que ainda andávamos na escola e eu o deixava. Lembro-me que costumava acompanhar os rapazes gabarolas que usavam bonés e distintivos, e que se movimentavam em grandes bandos, estão aqui alguns esta noite, jantando juntos, impecavelmente vestidos, à espera do momento mais indicado para seguirem para o salão de dança. Adorava-os. O certo é que eles me fazem viver, tanto quanto vocês o fazem. Também, quando me separo de vós e o comboio parte, sei que sentem que não é este que se vai embora, mas sim eu, Bernard, que não me interesso, que não sinto, que não tenho bilhete, que talvez o tenha perdido na mala. A Susan, os olhos presos no fio que aparece por entre as folhas das faias, grita: “Ele partiu! Escapou-me!”. Não existe nada a que me possa agarrar. Estou continuamente a ser montado e desmontado. Pessoas diferentes fazem-me pronunciar palavras diferentes.

Assim, esta noite não queria estar sentado junto a apenas uma pessoa, mas sim a cinquenta. Todavia, sou o único de entre vós que se senta aqui como se estivesse em casa, e isto sem se deixar cair na vulgaridade. Não sou nem grosseiro nem snob. Se ficar exposto à pressão da sociedade, o certo é que, com a habilidade com que falo, são muitas as vezes em que consigo transpor conceitos difíceis para expressões quotidianas. Vejam como os meus brinquedos, construídos a partir do nada em apenas alguns segundos, servem de entretenimento. Não sou ganancioso – quando morrer, de mim apenas restará um armário repleto de roupas velhas – e mostro-me praticamente indiferente face às vaidades menores da vida, as quais tantas torturas causam ao Louis. Mesmo assim, tenho feito bastantes sacrifícios. Dado que em mim correm veios de ferro, prata, e até mesmo de lama, sou incapaz de tomar as atitudes firmes comuns aos que não dependem de estímulos. Não consigo recusar seja o que for, de mostrar o heroísmo do Louis e da Rhoda. Nunca serei capaz, mesmo a falar, de construir uma frase perfeita. Porém, a minha contribuição para o momento presente foi bem maior que a vossa; entrarei em mais quartos (e em quartos muito diferentes entre si) do que qualquer um de vós. Mas, acabarei por ser esquecido devido a algo que vem de fora e não de dentro; quando me calar serei lembrado como o eco de uma voz que costumava ornamentar a fruta com frases.