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– Mais uma vez – disse Louis –, agora que estamos prestes a nos separar (já pagámos a conta), o círculo que nos corre pelas veias volta a se formar, mesmo depois de ter sido quebrado tantas vezes e de forma tão abrupta. Algo se conseguiu. Sim, quando nos levantamos, um pouco nervosos, rezamos uma espécie de oração que transmite este sentimento comum, Não se mexam, não deixem que a porta de vaivém destrua aquilo que construímos e se concentra aqui, entre estas luzes, estas cascas, estes montes de côdeas de pão e de gente a passar. Não se mexam, não se vão embora. Deixem-se ficar para sempre.

– Vamos mantê-lo assim por um momento – disse Jinny –, amor, ódio, seja qual for o nome por que o chamemos, a este globo cujas paredes só existem devido ao Percival, à juventude e à beleza, e também a algo tão profundamente interiorizado em nós, que é provável que nunca se venha a conseguir um momento igual a este.

– Estão aqui representadas as florestas e os países distantes que existem do outro lado do mundo – disse Rhoda. – Mares e selvas; os uivos dos chacais e o luar caindo num qualquer pico sobre o qual a águia paira.

– Estão aqui representadas a felicidade e a paz das coisas comuns – disse Neville. – Uma mesa, uma cadeira, um livro com uma faca de papel enfiada entre as páginas. A pétala a cair da rosa e a luz brilhando à nossa volta, quer quando estamos em silêncio quer quando dizemos uma qualquer trivialidade.

– Estão aqui contidos os dias da semana – disse Susan. – Segunda, terça, quarta; os cavalos a subir os campos e o seu posterior regresso; as gralhas voando para cima e para baixo, envolvendo os ulmeiros na sua rede, e isto quer em Abril quer em Novembro.

– Estão aqui contidos todos os momentos que hão-de vir – disse Bernard. – Trata-se da última gota, e também da mais brilhante, que deixamos cair no momento maravilhoso criado em nós pelo Percival.

Que virá a seguir?, pergunto, sacudindo as migalhas do colete. O que me espera lá fora? Provámos, pelo simples facto de termos estado aqui sentados, a comer e a falar, que podemos trazer algo de novo à arca dos tesouros. Não somos obrigados a vergar as costas e a apanhar todas as chicotadas que nos quiserem dar. Também não somos carneiros, prontos a seguir um mestre. Somos criadores. Construímos algo que se juntará aos inúmeros feitos do passado. Também nós, à medida que pomos os chapéus e abrimos a porta, saímos de encontro a um mundo que a nossa força pode subjugar, fazendo-nos pertencer àquela estrada iluminada e eterna, e não ao caos.

Agora, enquanto eles chamam o táxi, talvez não seja má ideia dares uma olhadela ao que vais perder, Percival. A estrada é dura e polida devido ao passar de muitas rodas. O dossel amarelo da enorme energia que emanamos paira por sobre as nossas cabeças como um tecido a arder. Essa luz é provocada por toda a espécie de teatros, salões de música e candeeiros acesos nas habitações.

– Nuvens pontiagudas – disse Rhoda –, viajamos por um céu escuro, semelhante a ossos de baleia polidos.

– É agora que começa a agonia; é agora que o terror me agarra com as suas garras – disse Neville. – É agora que o táxi chega; é agora que o Percival parte. Que podemos nós fazer para o manter junto a nós? Como encurtar a distância que nos separa? Como atiçar este fogo de forma a fazê-lo arder para sempre? Como registrar para todo o sempre que nós, os que aqui se encontram nesta rua iluminada, amámos o Percival? Ele já nos abandonou.

O Sol atingira o ponto mais alto. Deixara de se mostrar semi-oculto e semipressentido através de insinuações subtis e brilhos, tal como se fosse uma jovem repousando num manto verde-marinho, a fronte enfeitada de jóias semelhantes a gotas de água, das quais, e vistas sob determinados ângulos, se elevam luzes opalinas que faiscam no ar como se de flancos de golfinhos a saltar ou lâminas cortantes se tratasse. Era agora impossível negar o ardor intenso do sol. Os seus raios batiam na areia dura, e as rochas transformavam-se em fornos rubros; nem os mais pequenos charcos lhes escapavam, o mesmo se passando com os peixes minúsculos que neles se ocultavam por entre as algas. Nada do que fora deixado na areia lhes conseguia fugir. A roda enferrujada, o osso branco, ou até mesmo a bota sem atacadores, negra como uma barra de ferro. Conferiam a todas as coisas a medida exacta de cor; os incontáveis brilhos característicos das dunas, o verde lustroso das ervas selvagens; ou então deixavam-se cair na vastidão do deserto, aqui enrugado pelo vento, ali varrido para dentro de dólmens abandonados, acolá manchado pelo verde-escuro das árvores típicas da selva. Iluminavam as cúpulas douradas das mesquitas, as frágeis casas cor-de-rosa e brancas características do Sul, e as mulheres de peitos grandes e cabelos brancos que se ajoelhavam junto ao rio, batendo as roupas enrugadas contra as pedras. O olhar impávido do Sol abarcava os navios a vapor que vogavam devagar pelas águas do mar, e, atravessando a cobertura construída pelos toldos amarelos, batia nos passageiros que dormitavam ou passeavam no convés, os quais se viam obrigados a proteger os olhos com a mão, à medida que, dia após dia, comprimido nos seus flancos oleados, o navio os continuava a transportar de forma monótona através das águas.

O sol batia nos cumes apinhados das encostas do sul, reflectindo-se nos leitos rochosos e profundos dos rios, sobretudo nos locais onde a água se apertara contra os pilares esguios das pontes de tal forma que as lavadeiras ajoelhadas nas pedras escaldantes mal tinham espaço para umedecer as roupas e onde as mulas escanzeladas abriam caminho por entre pedras cinzentas, transportando alforjes por sobre o dorso estreito. Ao meio-dia, o calor do sol tornava cinzentas as montanhas, tal como se tivessem sido desnudadas e queimadas durante uma qualquer explosão, enquanto, mais a norte, nos países mais enevoados e chuvosos as colinas adquiriam a suavidade de uma laje e uma luz própria, como se uma sentinela, oculta nas profundezas fosse caminhando pelas diversas câmaras transportando um lampião verde. O Sol atingia os campos ingleses escoando-se através de átomos de ar cinzento-azulados, iluminando pântanos e charcos, uma gaivota branca pousada num mastro, o lento pairar das sombras por sobre os bosques e os campos de milho novo e feno ondulante.