Incidia na parede do pomar, e os grãos de todos os tijolos pareciam iluminados por uma luz prateada, rubra, mas que, e ao mesmo tempo dava a sensação de ser suave ao toque, como se o simples facto de ser tocada fizesse com que se derretesse em grãos de poeira. As groselhas apoiavam-se ao muro, provocando cascatas de um vermelho lustroso; as ameixas rompiam por entre as folhas, e todas as tonalidades de erva se uniam numa torrente fluida de verde. A sombra das águas afundava-se num ponto escuro junto às raízes. A luz que caía em cascatas dissolvia a vegetação separada, transformando-a numa única mancha verde.
As aves entoavam com fervor melodias destinadas apenas a um emissário, depois do que paravam. Emitindo toda a espécie de ruídos abafados, transportavam pequenas palhas e raminhos, juntando-os nos escuros nós situados nos ramos mais altos das árvores. Douradas e purpúreas, empoleiravam-se nos ramos existentes no jardim, onde cones de laburno e carmim albergavam manchas douradas e lilases, pois que agora, ao meio-dia o jardim não podia estar mais florido, e até os túneis por baixo das plantas apresentavam tons de verde, vermelho e amarelo-torrado, consoante o sol se escoava através de pétalas encarnadas e amarelas, ou tivesse dificuldade em atravessar um qualquer caule mais grosso.
O sol incidia directamente na casa, fazendo luzir as paredes brancas situadas entre as janelas escuras. As vidraças, unidas com os ramos verdes numa trama quase que inseparável, construíam círculos de uma escuridão impenetrável. Triângulos de luz possuidores de contornos bem definidos poisavam nos parapeitos das janelas, revelando o conteúdo das diversas salas: pratos enfeitados de anéis azuis, chávenas com pegas curvas, a forma de uma qualquer tigela de grandes dimensões, o padrão axadrezado do tapete, e todos os recantos e paredes forrados com papeleiras e estantes. Para lá deste conglomerado situava-se uma zona de sombras, na qual talvez se pudesse descobrir uma qualquer outra forma, ou nada mais existisse para além de abismos ainda mais profundos de escuridão.
As ondas quebravam-se, espalhando as águas com suavidade ao longo da praia. Uma a seguir à outra, enrolavam-se e caíam; devido à energia com que o faziam, as gotas eram obrigadas a recuar. As ondas apresentavam uma coloração azul profunda excepto no que respeitava a um ponto luminoso em forma de diamante situado na crista, que se encrespava de forma semelhante à que acompanha os movimentos dos músculos dos cavalos. As ondas quebravam; recuavam e voltavam a quebrar, emitindo um som semelhante ao que é provocado pelo bater das patas de um animal de grande porte.
– Morreu – disse Neville. – Caiu. O cavalo tropeçou.
Foi cuspido. As velas do mundo giravam com violência e atingiram-me em cheio na cabeça. Tudo terminou. Apagaram-se as luzes do mundo. Aquela é a árvore através da qual não passo.
Oh, se eu pudesse rasgar este telegrama – devolver a luz ao mundo – dizer que isto não aconteceu! Mas para quê bater com a cabeça nas paredes? Trata-se da verdade. Trata-se de um facto. O cavalo tropeçou; ele caiu. As árvores brilhantes e a vedação branca estilhaçaram-se em mil pedaços. Toldou-se-lhe o olhar; sentiu um tambor ressoar junto aos seus ouvidos. Só então se deu a explosão; o mundo desabou; faltou-lhe o ar. Morreu ao chegar ao solo.
Celeiros e dias estivais passados no campo, salas onde nos sentamos – tudo isso pertence agora a um mundo irreal que já não existe mais. Deixei de ter passado. Os outros aproximaram-se a correr. Levaram-no para um qualquer pavilhão; tratava-se de homens com botas de montar e chapéus coloniais. Morreu entre desconhecidos. Era com frequência que a solidão e o silêncio o rodeavam. E depois, ao voltar, eu dizia sempre “Olhem quem lá vem!”.
As mulheres andam como se na rua não existisse um abismo, nenhuma árvore de folhas rijas através da qual é impossível passar. Não há dúvida de que merecemos ser soterrados. Somos terrivelmente abjectos, avançando de olhos fechados. Mas por que razão me deverei submeter? Para quê tentar erguer o pé e subir as escadas? É aqui que me encontro; aqui, a segurar o telegrama. O passado (os dias estivais e as salas onde nos sentávamos) vão desaparecendo como se fossem papéis queimados contendo olhos vermelhos.
Para quê marcar encontros e retomar velhas amizades? Para quê falar, comer, e combinar coisas com outras pessoas? Estarei sempre só a partir de agora. Ninguém mais me conhecerá. Tenho três cartas. “Vou jogar quoits com um coronel, por isso fico por aqui.” É assim que ele termina a nossa amizade, abrindo caminho por entre a multidão ao mesmo tempo que se despede com um aceno. Esta farsa não merece que a voltemos a celebrar em termos formais. Contudo, se alguém tivesse dito “Espera”, talvez ele tivesse apertado melhor a correia – talvez vivesse por mais cinquenta anos e acabasse por arranjar lugar na corte, comandando tropas e denunciando tiranias monstruosas, tudo para acabar por regressar para junto de nós.
Digo agora que existe um sorriso, uma evasiva. Existe algo que ri de forma escarninha nas nossas costas. Aquele rapaz quase que caía ao subir para o autocarro. O Percival caiu; morreu; está enterrado; e eu vejo as pessoas passarem; agarrar-se com força aos varões dos autocarros, determinadas a salvar a vida.
Não levantarei o pé para subir a escada. Vou-me deixar ficar um pouco mais debaixo desta árvore insaciável, a sós com o homem do pescoço cortado, enquanto no andar de baixo a cozinheira se ocupa do fogão. Não subirei a escada. Estamos condenados, todos nós. As mulheres vão passando a correr, carregadas com os sacos das compras. As pessoas não param de correr. Porém, vocês não me vão destruir. Durante este instante, este breve instante, estamos juntos. Aperto-vos contra mim. Vem, dor, alimenta-te em mim. Enterra as tuas presas na minha carne. Desfaz-me em pedaços. Soluço, soluço.
– Assim é a incompreensível combinação das coisas – disse Bernard –, assim é a complexidade das coisas. O certo é que, enquanto vou descendo as escadas, não sei distinguir a dor da alegria. O meu filho nasceu; o Percival está morto. Vou-me apoiando aos pilares; estou rodeado por emoções fortes; todavia, como distinguir a tristeza da alegria? Faço esta pergunta a mim mesmo e não encontro qualquer resposta. Sei apenas que preciso de silêncio, de estar só e de sair daqui, e de passar uma hora a meditar sobre o que aconteceu ao meu mundo, que tipo de morte nele ocorreu.
É então este o mundo que o Percival nunca mais verá.
Deixa-me olhá-lo. O carniceiro entrega carne na porta ao lado; dois velhotes arrastam-se pela calçada; os pardais levantam voo.
Há ali uma máquina a funcionar; sinto o seu ritmo, e dado ele já não a ver, encaro-a como algo de que já não faço parte. (A estas horas, o seu corpo pálido e amortalhado repousa numa qualquer sala.) Chegou agora a minha oportunidade de descobrir o que é de facto importante, e para tal devo ter muito cuidado e não dizer mentiras. O que sentia a seu respeito resume-se a isto: ele ocupava o lugar central. Já não vou mais a esse ponto.
O lugar está vazio.
Oh, sim, posso garantir-vos, homens de chapéus de feltro e mulheres transportando cestos – perderam algo que vos seria de grande valor. Perderam um chefe que não teriam relutância em seguir; e uma de vós perdeu a felicidade e os filhos.
Aquele que vos daria tudo isto está agora morto. Está em cima de uma maca, enrolado em ligaduras, num qualquer hospital indiano, isto enquanto os nativos, sentados no chão, agitam aqueles leques – esqueci-me de como se chamam. Contudo, “isto é importante; Vocês não sabem de nada”, disse, ao mesmo tempo que as pombas poisavam nos telhados e o meu filho nascia. Lembro-me bastante bem do ar de desapego que o caracterizava enquanto rapaz. E lá acabo por dizer (os meus olhos vão-se enchendo de lágrimas que secam quase no mesmo instante) que: “Mas isto é melhor do que aquilo que se poderia esperar”. É isto que digo, dirigindo-me ao abstracto, vendo-me cego no fundo da avenida, no céu: “Será que não podes fazer mais nada?”. Acabamos por triunfar. “Fizeste tudo o que podias”, digo, falando com aquele rosto vazio, brutal e sem qualquer préstimo (pois ele só tinha vinte e cinco anos e devia ter vivido até aos oitenta). Não me vou deitar no chão e chorar toda uma vida. (Temos aqui uma boa entrada para a minha agenda; desprezo por todos aqueles que impõem mortes sem sentido.) Para mais, e isto é importante, eu devia ter sido capaz de o ter colocado em situações banais e ridículas, pois só assim evitaria encará-lo como algo absurdo, montado num enorme cavalo. Devia ter sido capaz de dizer: “Percival mas que nome, tão ridículo!”. Contudo, deixem-me que vos diga, homens e mulheres que se precipitam para a estação de metropolitano, que teriam de o respeitar. Teriam de se alinhar atrás dele e segui-lo. É tão estranho abrir caminho ao longo de multidões que vêem a vida através de olhos vazios, escaldantes.