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Assim, vou descer as escadas, apanhar o primeiro táxi que encontrar, e seguir para casa da Jinny.

– Há ali uma poça – disse Rhoda –, e não a consigo atravessar. Escuto o ruído da mó, que me chega vindo de um ponto a escassos centímetros da minha cabeça. O vento ruge quando me bate no rosto. Todas as formas palpáveis da vida me abandonaram. Serei sugada pelo corredor eterno se não conseguir agarrar nada de sólido. Sendo assim, em que poderei tocar. Que tijolo, que pedra, me possibilitará regressar ao meu corpo em segurança?

A sombra caiu e a luz incide de forma oblíqua nas coisas. A figura que antes estava envolta em beleza, não passa agora de um objecto arruinado. A figura que antes se encontrava no bosque onde as colunas se juntavam não passa agora de destroços. Foi isso que lhe disse quando todos afirmaram amar a sua voz, os sapatos velhos que usava, e os momentos em que se juntavam.

Preparo-me para descer Oxford Street e enfrentar um mundo iluminado pelos relâmpagos; verei os ramos dos carvalhos, até então floridos, quebrarem-se e adquirirem uma coloração avermelhada. Irei até Oxford Street comprar meias para ir a uma festa. Farei as coisas do costume iluminada pelo brilho dos relâmpagos. Colherei violetas, farei com elas um ramo e entregá-las-ei ao Percival. Serão a prenda que lhe darei. Reparem agora no que ele me ofereceu. Reparem na rua agora, depois de o Percival ter morrido. Os alicerces das casas são de tal maneira fracos, que estas podem ser arrastadas pela mais ligeira brisa. Semelhantes a mastins sangrentos, os automóveis passam por nós a correr e a rugir. Estou só num mundo hostil.

O rosto humano é hediondo. As coisas estão como eu gosto. Quero que a violência e a publicidade deslizem pelas ruas como pedras durante uma avalancha. Gosto das chaminés das fábricas, das gruas e dos camiões. Gosto deste desfilar incessante de rostos deformados, indiferentes. Estou farta da beleza; estou farta da privacidade. Cavalgo as ondas e afundar-me-ei sem que haja alguém para me salvar.

Pelo simples facto de ter morrido, o Percival deixou-me este presente, revelou-me este terror, fez-me passar esta humilhação – rostos e mais rostos, sucedendo-se como pratos de sopa servidos por moços de cozinha; rudes, gananciosos, vulgares; os olhos postos nas montras das lojas; cobiçando, varrendo e destruindo tudo. Até mesmo o nosso amor se tornou impuro depois de ter sentido o contacto dos seus dedos sujos.

Cá está a loja onde se vendem meias. Chego mesmo a acreditar que a beleza está outra vez em movimento. Ouço-a sussurrar ao longo dos corredores, através das rendas, respirando por entre os cestos de fitas coloridas. Afinal, sempre existem nichos protectores gravados no coração da tempestade; refúgios silenciosos onde nos podemos esconder da verdade ocultando-nos sob as asas da beleza. A dor fica como que suspensa quando vejo uma rapariga abrir uma gaveta no maior dos silêncios. É então que fala. O som desperta-me. A sua voz transporta-me ao fundo do mar. Lá, por entre as algas, vejo a inveja, o ciúme, o ódio e o desprezo rastejarem como caranguejos por sobre a areia. São estes os nossos companheiros. Pagarei a conta, só então partindo com o embrulho que me pertence.

Estou em Oxford Street. Aqui se concentram o ódio, a inveja, e também a indiferença, precipitando-se depois contra a fachada daquilo a que chamamos vida. O certo é que acabam por nos acompanhar. Pensemos nos amigos com quem nos sentamos para jantar. Vem-me à ideia o Louis, a ler a página desportiva de um qualquer jornal da tarde, cheio de medo de cair no ridículo; um snob. Se lhe submetêssemos, acabaria por mandar em nós. A melhor forma que encontrou para mitigar a dor provocada pela morte do Percival é olhar fixamente para o galheteiro, para lá dos prédios, até nada mais ver para além do céu. Enquanto isso, até nada mais ver para além do céu.

Enquanto isso, e de olhos vermelhos, o Bernard afunda-se numa poltrona. Acabará por puxar do bloco-notas: escreverá o seguinte na letra M: “Frases para serem usadas por ocasião da morte de amigos”. A Jinny, atravessando a sala a dançar, irá sentar-se no braço da poltrona em que o Bernard se encontra e perguntar-lhe-á: “Ele amava-me? Mais do que à Susan?” Esta última, noiva de um agricultor da sua terra, olhará para o telegrama durante alguns segundos sem deixar de segurar o prato que tem numa das mãos; depois, com o tornozelo, fechará a porta do forno. O Neville, depois de ter chorado durante algum tempo frente à janela, acabará por ver através das lágrimas e perguntar: “Quem está a passar lá fora?”

– “Qual o rapaz mais belo que por aí anda?”

É esta a homenagem que presto ao Percival; um ramo de violetas escuras, murchas.

Assim sendo, para onde ir? Talvez que para algum museu onde existam anéis dentro de redomas de vidro, armários e vestidos usados por rainhas. Ou deverei antes ir para Hampton Court e ficar a olhar para as paredes vermelhas, os pátios e toda aquela massa compacta de teixos que projectam na erva e nas flores as suas sombras negras e em forma de pirâmide?

Será lá que recuperarei o sentido de beleza, impondo ordem na minha alma atormentada? Ao fim e ao cabo, que se pode fazer quando se está só? Limitar-me-ia a permanecer na erva vazia e a dizer: “As gralhas voam; alguém passa transportando uma mala; o jardineiro empurra um carrinho de mão”. Ficaria numa fila, sujeita a sentir o cheiro a suor dos outros e a apanhá-lo como que por contágio. Seria comprimida contra as pessoas como se fosse um rolo de carne comprimido contra outros rolos de carne.

Vejo um salão onde se paga para entrar e onde se pode escutar música por entre grupos de gente sonolenta que até aqui se deslocou nesta tarde quente, depois do almoço. Comemos carne e pudim em quantidade suficiente para sobreviver durante uma semana sem tocar nos alimentos. É por isso que nos juntamos aos magotes e nos recostamos contra o fundo de qualquer coisa que nos transporte. Com todo o decoro e dignidade – por baixo dos chapéus, temos madeixas bem penteadas de cabelo branco; sapatos elegantes; malinhas de mão, rostos bem escanhoados; aqui e ali vêem-se alguns bigodes militares. Não foi permitido o mais pequeno grão de poeira no nosso pano de primeira qualidade. Sentamo-nos a abrir os programas e a cumprimentar os amigos. Parecemos morsas empoleiradas nas rochas. Somos como corpos demasiado pesados para seguir rumo ao mar. Imploramos que uma onda nos levante, mas somos demasiado pesados e entre nós e o mar existe uma vasta extensão de terreno coberta de seixos. Lá nos vamos deixando ficar, enfartados de tanta comida e entorpecidos pelo calor. É então que, inchada mas envergando num traje de cetim escorregadio, uma sereia verde resolve vir em nosso socorro. Morde os lábios, assume um ar de intensidade, insufla-se e eleva-se nos ares quase que no mesmo instante, tal como se tivesse visto uma maçã, e o som por ela emitido, “Ah!” fosse uma flecha.

Sei de uma árvore que foi cortada ao meio por um machado; a seiva ainda está quente; a casca é percorrida por muitos sonos. “Ah!”, gritou uma mulher ao amante, inclinando-se da janela, em Veneza. “Ah, ah!”, gritou, apenas para o voltar a fazer: “Ah!”. Brindou-nos com um grito, e apenas com um grito. Porém, qual o significado de um grito? É então que chegam os homens-escaravelhos com os seus violinos; esperam; contam; acenam; baixam os arcos. Ouvem-se então murmúrios e gargalhadas. Lembramo-nos então da dança das oliveiras e da grande quantidade de línguas faladas pelas suas folhas cinzentas sempre que uma qualquer sereia aparece na praia, a mordiscar um qualquer raminho.

Semelhanças, semelhanças e ainda mais semelhanças – mas, afinal, que será que se oculta por trás da aparência das coisas? Agora, depois de o raio ter fulminado a árvore, de o ramo florido se ter abatido no chão, e de o Percival (pelo simples facto de estar morto) me ter legado tudo isto, talvez agora tenha chegado o momento de analisar a questão. Ali está um quadrado; ali está um rectângulo. Os músicos pegam no quadrado e colocam-no no rectângulo. Fazem-no com bastante precisão; ficamos com a ideia de que não podiam ter feito melhor. Pouco é deixado de fora. A estrutura torna-se visível; registra-se agora o começo; não somos nem tantos nem tão mesquinhos; construímos triângulos e colocamo-los em cima de quadrados. É este o nosso triunfo; é este o nosso consolo.