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A doçura própria desta alegria escorre pelas paredes da minha mente, libertando a compreensão. “Não vagueis mais”, digo, “chegaste ao fim”. O rectângulo foi colocado por cima do quadrado; a espiral está no topo. Fomos transportados por sobre os seixos até atingirmos o mar. Os músicos estão de volta. Contudo, desta vez estão a fazer carretas. Deixaram de se mostrar tão janotas e joviais como antes. Acabarei por partir.

Esta tarde, farei uma peregrinação. Irei a Greenwich. Sem revelar qualquer espécie de medo, entrarei em eléctricos e autocarros. À medida que descemos Regent Street e vou sendo atirada ora contra esta mulher ora contra este homem, o facto não me irrita nem me ultraja. Há um quadrado em cima de um rectângulo. Cá estão as ruas pobres, onde é costume regatear nos mercados; onde todo o tipo de ferro, lingueta e parafuso é posto de lado, e onde as pessoas se movem pelos campos como que em enxames, beliscando carne crua com os dedos grossos. A estrutura é bem visível. Acabamos por a transformar num lugar para habitar.

São então estas as flores que crescem nos campos de erva dura onde as vacas pastam, batidas pelo vento, deformadas sem frutos nem botões. É isto que trago, é isto que arranquei pelas raízes do passeio de Oxford Street, tu, o meu pequeno ramo de violetas baratas. Agora, sentada no eléctrico, vejo mastros por entre as chaminés; lá está o rio; lá estão os navios que partem para a Índia. Caminharei junto ao rio. Percorrerei este aterro onde um velhote lê o jornal que se encontra por detrás de um vidro. Percorrerei este terraço e verei os navios curvando-se ao sabor da maré. Há uma mulher no convés e um cão a ladrar em seu redor. A saia e o cabelo dela são batidos pelo vento; vão a caminho do mar; abandonam-nos; com eles levam este entardecer estival. Resignar-me-ei; acabarei por me perder. Acabarei por soltar o meu tão reprimido desejo de ser gasta, consumida. Galoparemos juntos por sobre colinas desertas onde as andorinhas mergulham as asas nos lagos e os pilares se mantêm direitos. E é contra a onda que bate com força na praia, é contra a onda que enche de espuma branca os cantos mais recônditos do mundo, que atiro as minhas violetas, a minha oferta ao Percival.

O Sol deixara de estar no meio do céu. A luz incidia na terra de forma oblíqua. Aqui, era a vez de um cantinho de nuvem se incendiar, de pronto se transformando numa ilha incandescente onde nenhum pé seria capaz de poisar. Aos poucos, todas as nuvens se deixavam apanhar pela luz, o que fazia com que as ondas se iluminassem com setas enfeitadas de penas, as quais caíam de forma desordenada no azul. O calor queimava as folhas mais altas das árvores, que murmuravam em surdina ao compasso da brisa suave. As aves estariam imóveis se, de vez em quando, não virassem as cabeças de um lado para o outro. Já não cantavam. Era como se o sol do meio-dia as tivesse sufocado, impedindo o som de sair. A borboleta poisou numa cana por alguns instantes, apenas para se voltar a lançar nos ares. O zumbido que se ouvia à distância dava a sensação de ser provocado pelo bater de asas que ora se elevavam ora se baixavam no horizonte. A água do rio mantinha os contornos de tal forma fixos, que era como se estes fossem redomas de vidro. Contudo, o vidro oscilou e as canas soltaram-se. Arquejando, de cabeça baixa, o gado caminhava pelos campos, movendo-se a custo. Pararam de cair gotas de água no balde que se encontrava perto da casa, tal como se estivesse cheio. Foi então que caíram uma, duas, três gotas, devagar, sem pressas.

As janelas revelavam de forma arbitrária pontos luminosos, por exemplo, a esquina de um ramo, ao que se seguia um qualquer espaço de claridade pura. A cortina apresentava uma tonalidade avermelhada, e, dentro do quarto, lâminas de luz incidiam nas cadeiras e nas mesas, abrindo fendas naquelas superfícies lacadas e polidas. A jarra verde adquiria dimensões monstruosas. A luz, empurrando a escuridão à sua frente, derramava-se em profusão por todos os cantos e saliências, ao mesmo tempo que, e de forma algo paradoxal, amontoava as trevas de forma anárquica.

As ondas formavam-se, curvavam-se e batiam com força na areia, fazendo voar pedras e seixos. Traziam as rochas e a espuma, elevando-se nos ares, espalhavam-se pelas paredes de uma rocha que antes estivera seca, ao passo que, em terra, deixavam atrás de si um rasto composto por pequenas poças onde alguns peixes perdidos abanavam as barbatanas sempre que uma nova onda se aproximava.

– Já assinei o meu nome por mais de vinte vezes – disse Louis. – Eu, de novo eu, e outra vez eu. Claro, firme e inequivocamente, lá está ele, o meu nome. Também eu tenho contornos definidos e sou inequívoco. Todavia, guardo em mim um vasto legado constituído por todo o tipo de experiências.

Sou como um verme que abriu caminho à dentada através da madeira de um velho carvalho. Mesmo assim, esta manhã sou compacto, consegui reunir todos os pedacinhos.

O Sol brilha e o céu está limpo. Contudo, o meio-dia não é marcado nem por uma grande chuvada nem por uma qualquer claridade especial. Trata-se da hora em que Miss Johnson me vem trazer a correspondência. Gravo o meu nome nestas páginas em branco. O sussurro das folhas, a água a escorrer pelas goteiras, abismos verdes manchados de dálias ou zínias; eu, ora duque ora Platão, amigo de Sócrates; o vaguear de negros e asiáticos viajando para este, oeste, norte e sul; a procissão eterna: as mulheres vão descendo o Strand transportando as suas carteiras, da mesma forma que antes carregavam as ânforas para o Nilo; todas as folhas dobradas em muitas partes, as quais correspondem a toda a minha vida, condensam-se na assinatura que gravo no papel. Sou agora um adulto; enfrento o sol e a chuva de cabeça erguida. Tenho de me deixar cair com a força de uma machadinha e cortar o carvalho com um único golpe, pois, se não o fizer, se me desviar e perder tempo a olhar de um lado para o outro, cairei como se fosse um floco de neve derretendo-me.

Estou semi-apaixonado pela máquina de escrever e pelo telefone. Consegui fundir todas as vidas que já vivi através de letras, cabos e ordens emitidas de forma delicada através do telefone, e que seguem para Paris, Berlim, Nova Iorque. Através da assiduidade e do poder de decisão que me caracterizam, consegui inserir estas linhas no mapa que une as diferentes partes do mundo.

Adoro chegar ao escritório às dez em ponto; adoro o brilho avermelhado do mogno escuro; adoro a secretária e os seus contornos bem definidos, bem assim como o modo como as gavetas deslizam em silêncio. Adoro o telefone com os lábios sempre prontos a receber os meus sussurros; o calendário de parede; a agenda. Há quem chegue sempre à mesma hora: Mr. Prentice às quatro; Mr. Eyres às quatro e trinta.

Gosto que me peçam para ir ao gabinete de Mr. Burchard prestar-lhe contas dos nossos negócios na China. Espero vir a herdar um cadeirão e um tapete persa. Pressiono o globo com os ombros; faço a escuridão girar à minha frente, levando o comboio às mais distantes partes do mundo, onde antes reinava o caos. Se assim continuar, transformando o caos em ordem, acabarei por me encontrar nos mesmos locais onde já antes estiveram Chatham, Pitt, Burk, e Sir Robert Peel. É assim que elimino certas nódoas e apago velhas ofensas: a mulher que me deu a bandeira que estava no cimo da árvore de Natal; a minha pronúncia; as pancadas e as outras torturas; os fanfarrões; o meu pai, um banqueiro de Brisbane.

Li o meu poeta preferido à mesa do restaurante, e, sempre a mexer o café, escutei os que, nas outras mesas, faziam apostas, e vi as mulheres hesitar ao se aproximarem do balcão. Afirmei que nada devia ser irrelevante, até mesmo um pedaço de papel castanho caído ao chão por acaso. Disse que as suas movimentações deviam ter um fim em vista; que deviam ganhar duas libras semanais às ordens de um mestre ilustre; que, quando chega a noite, somos envolvidos por uma qualquer mão, um qualquer manto. Quando tiver cicatrizado estas feridas e compreendido estas monstruosidades de modo a que não necessitem nem de pretextos nem de desculpas, que nos obrigam a despender tantas energias, devolverei às ruas e aos restaurantes aquilo que perderam quando caíram nestes tempos difíceis e se quebraram contra estas praias rochosas. Reunirei algumas palavras e forjarei à nossa volta um anel de aço.