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Levantei-me. Terminara o pequeno-almoço. Tínhamos todo o dia pela frente, e, dado o tempo estar agradável, atravessamos o parque e fomos até ao cais, descemos o Strand até chegarmos a St. Paul, e paramos na loja onde comprei o guarda-chuva. Nunca deixamos de conversar, parando de vez em quando para ver as montras. Contudo, será que isto pode durar? Foi esta a pergunta que fiz quando avistei o leão de Trafalgar Square – foi aí que revi o passado, cena a cena; ali está um ulmeiro, e é aí que o Percival se encontra. Jurei que para sempre. Foi então que me deixei invadir pelas dúvidas do costume. Apertei-te a mão. Deixaste-me. A descida até ao metropolitano foi como experimentar a morte. Somos como que separados, dissolvidos, por todos aqueles rostos e também pelo vento oco que parece rugir naqueles corredores desertos. Sentei-me a observar o meu próprio quarto. Às cinco fiquei a saber que eras infiel. Peguei no telefone e o zumbir estúpido da sua voz a ecoar no quarto vazio fez com que o coração me caísse aos pés. Foi então que a porta se abriu e tu apareceste. Tratou-se do mais perfeito dos nossos encontros. Porém, estes encontros e despedidas acabam por nos destruir., Tenho a impressão de que esta sala é central, qualquer coisa escavada na noite eterna. Lá fora, as linhas cruzam-se e intersectam-se, mas sempre à nossa volta, envolvendo-nos. Estamos num ponto central. Aqui podemos estar em silêncio ou falar sem levantar a voz. “Já reparaste nisto e naquilo?”, perguntamos. Quando ele disse isto, queria dizer... Ela hesitou, e acredito que tenha mesmo chegado a suspeitar. Seja como for, o certo é que, ontem à noite, nas escadas, ouvi vozes e um soluço. Tratava-se do fim da relação por eles mantida. É assim que tecemos os mais delicados filamentos em nosso redor, construindo um sistema. Platão e Shakespeare estão incluídos, o mesmo se passando com uma série de gente obscura, de pessoas sem qualquer importância. Odeio homens que usam crucifixos no lado esquerdo do colete. Odeio cerimônias, lamentações, e a figura trêmula e triste de Cristo colocada junto a outras figuras tremulas e tristes. Odeio igualmente a pompa, a indiferença e o ênfase, sempre colocado no local errado, de todas as pessoas que se pavoneiam à luz de candelabros envergando vestidos de noite, estrelas e condecorações. Há ainda os que urinam contra as vedações ou contra o sol poente nas planícies iluminadas pela luz fraca do Inverno, já para não falarmos do modo como algumas mulheres se sentam no autocarro, de mãos nas ancas, transportando cestos – são estas as pessoas que nos levam a fazer sinais aos amigos para que as olhem. Constitui um enorme alívio ter alguém a quem fazer sinais e não pronunciar qualquer palavra. Seguir os carreiros escuros da mente e entrar no passado, visitar livros, empurrar ramos e arrancar alguns frutos. Então, tu pegas neles e ficas em estado de êxtase. Enquanto isso, eu observo os movimentos descontraídos do teu corpo e maravilho-me com o à-vontade que os caracteriza, a sua força – o modo como abres as janelas de par em par, e tens a mesma facilidade em mover ambas as mãos. Mas, infelizmente, a minha mente anda um pouco preguiçosa, cansa-se com facilidade; deixo-me cair exausto; talvez que um pouco enjoado, sempre que alcanço o objectivo a que me tinha proposto. Caramba! Não pude montar a cavalo na Índia, usar um chapéu colonial e regressar a um bangalô. Sou incapaz de pular, como tu fazes, como o fazem todos aqueles rapazinhos seminus que, no convés dos navios, se molham mutuamente com as mangueiras. Quero esta lareira, quero esta cadeira. Quero alguém que se sente a meu lado depois de toda a angústia e correria do dia-a-dia, das suas conversas, esperas e suspeitas. Depois das brigas e reconciliações, preciso de privacidade – de estar a sós contigo, de fazer calar este tumulto. O certo é que os meus hábitos são tão organizados como os dos gatos. Temos de combater o desperdício e as deformidades do mundo, as multidões que nele se agitam, ruidosas e apressadas. Temos de usar facas de cortar papel para abrir de forma correcta as páginas dos livros, atar maços de cartas com fitas de seda verde, e varrer as cinzas com a vassoura da lareira.

Devemos fazer tudo o que nos permita exprobrar o horror da deformidade. O melhor será lermos os escritores que apregoam a austeridade e a severidade romanas; o melhor será procurarmos a perfeição por entre as areias. Sim, mas o certo é que adoro deixar escapar a virtude e a austeridade dos nobres romanos sob a luz cinzenta dos teus olhos, das ervas que dançam a compasso com as brisas estivais, e das gargalhadas e gritos dos rapazes que não param de brincar – daqueles rapazes nus que se molham no convés dos navios, servindo-se para isso de mangueiras. É por isso que, ao contrário do Louis, não busco a perfeição de forma desinteressada. As páginas apresentam sempre muitas cores; as nuvens passam por sobre elas. Quanto ao poema – é apenas o som da tua voz. Alcibíades, Ájax, Heitor e Percival, todos eles se encarnam em ti. Adoravam montar, arriscavam a vida em Verão, e também não eram grandes leitores. Todavia, não és Ájax nem Percival. Eles não franziam o nariz nem coçavam a testa com gestos tão precisos. Tu és tu. É isso que me consola da falta de muitas coisas – sou feio, sou fraco –, da depravação do mundo, do passar da juventude, da morte do Percival, e de todo um sem-número de amarguras, rancores e invejas. Porém, se houver um dia em que não venhas logo após o pequeno-almoço, se houver um dia em que, através do espelho, te vir à procura de outro, se o telefone não parar de tocar no teu apartamento vazio, então, depois de ter sentido uma angústia indescritível, então – pois não há fim para a loucura existente nos corações humanos – procurarei outro; acabando por encontrar alguém parecido contigo. Entretanto, o melhor será abolirmos o tiquetaque do relógio com um único gesto. Aproxima-te!

O Sol estava agora mais baixo. As ilhas compostas por nuvens haviam ganho em densidade e espalhavam-se frente ao Sol, fazendo com que as rochas escurecessem subitamente, as algas tremulas perdessem o tom azul que lhes era característico e se tornassem em fios prateados, e as sombras fossem arrastadas pelo mar como farrapos cinzentos. As ondas haviam deixado de alcançar as poças situadas mais acima, o mesmo se passando em relação à linha escura traçada na praia de forma irregular. A areia apresentava uma coloração branca semelhante à das pérolas, e era macia e brilhante.

Lá bem no alto, as aves voavam em círculos. Algumas montavam as pregas do vento e nelas se moviam como se fossem um corpo cortado em mil pedaços. Semelhantes a redes, os pássaros caíam das copas das árvores. Aqui, uma ave solitária dirigia-se para o pântano, acabando por se sentar numa estaca branca, depois do que abria as asas apenas para as voltar a fechar.

Caíram algumas pétalas no jardim. Lembram conchas poisadas no solo. A folha morta já não se encontra na vedação, tendo antes sido arrastada, ora correndo ora parando, contra uma qualquer haste. Todas as flores eram iluminadas pela mesma onda de luz e rapidez, semelhante a uma barbatana riscando o espelho verde de um lago. De vez em quando, uma rajada agitava as folhas para cima e para baixo, até que, com o amainar do vento, estas acabavam por recuperar a sua identidade. As flores, queimando os discos brilhantes ao sol, espalhavam luz por toda a parte sempre que o vento as agitava, depois do que algumas cabeças demasiado pesadas para se voltarem a erguer pendiam um pouco.

O sol da tarde iluminava os campos, tingindo as nuvens de azul e os milheirais de vermelho. Os campos pareciam estar cobertos por uma grossa camada de verniz. Carroças, cavalos, bandos de gralhas – fosse o que fosse que ali se movesse ficava envolvido em ouro. Quando as vacas mexiam as patas, era como se delas se desprendessem fios de ouro-velho, dando a impressão de terem os cornos envoltos em luz. As vedações estavam cobertas por espigas de milho dourado, as quais haviam sido arrastadas das carroças desengonçadas que subiam os campos com um ar primitivo, primordial. As nuvens de cabeça redonda nunca se desfaziam, mantendo antes todos os átomos que as tornavam tão redondas. Agora, ao passarem apanhavam toda uma aldeia na rede por elas formada, depois do que a deixavam de novo em liberdade. Lá longe, por entre os milhões de grãos de poeira azul acinzentada, via-se arder uma vidraça ou adivinhavam-se os contornos de um campanário ou de uma árvore.