As cortinas vermelhas e as persianas brancas esvoaçavam para dentro e para fora batendo contra o parapeito da janela, e a luz que se escoava e filtrava de forma irregular possuía um qualquer pigmento castanho e um certo ar de abandono, como se fosse soprada em folgadas contra as cortinas. Neste ponto, fazia com que uma papeleira se tornasse um pouco mais castanha, enquanto naquele fazia tremer a janela junto à qual se encontrava a jarra verde.
Durante alguns instantes, tudo estremeceu e se curvou devido à incerteza e à ambiguidade, como se uma grande borboleta nocturna que percorresse a sala tivesse ocultado com as asas a enorme solidez das cadeiras e das mesas.
– E o tempo – disse Bernard – deixa cair a sua gota. A gota que se formou no topo da alma acaba por cair. No topo da minha mente, o tempo deixou cair a sua gota. Esta caiu a semana passada, quando me estava a barbear. De súbito, com a lâmina na mão, apercebi-me da natureza puramente mecânica do acto que desempenhava (era a gota a formar-se) e, não sem alguma ironia, dei os parabéns às minhas mãos por conseguirem levar as coisas até ao fim. Barbeia, barbeia, barbeia, disse. Continua a barbear. A gota caiu. Durante o dia, a intervalos regulares, sentia que o espírito como que viajava até esse espaço vazio, perguntando: “O que se perdeu? O que terminou?”. Ainda murmurei: “Acabado e bem acabado, acabado e bem acabado”, consolando-me com palavras. As pessoas repararam na expressão vazia do meu rosto e na inutilidade da conversa. As últimas palavras da frase foram-se apagando. E, quando apertava o casaco e me preparava para ir para casa, disse de forma dramática: “Perdi a juventude.”
É curioso que, quando ocorre uma crise, há uma frase que insiste em nos vir socorrer, mesmo nada tendo a ver com o caso – trata-se do castigo de viver numa civilização antiga e munido de um bloco-notas. A gota que caiu nada tinha a ver com o facto de estar a perder a juventude. Esta gota mais não era que o tempo a atingir um certo ponto. O tempo, que mais não é que um pasto soalheiro coberto por uma luz trêmula, o tempo, que se espalha pelos campos ao meio-dia, fica como que suspenso num determinado ponto. Semelhante a uma gota que cai de um copo cheio, assim o tempo cai. São estes os verdadeiros ciclos, os verdadeiros acontecimentos. Então, como se toda a luminosidade da atmosfera tivesse sido retirada, vejo-lhe o fundo vazio. Vejo aqui o que o hábito cobre.
Deixo-me ficar na cama durante dias a fio. Janto fora e não paro de bocejar. Nem sequer me dou ao trabalho de concluir as frases, e as acções que pratico, por norma tão inconstantes adquirem uma precisão mecânica. Foi numa destas ocasiões que, ao passar por uma agência de viagens e nela tendo entrado, comprei um bilhete para Roma com a compostura característica das figuras mecânicas.
Encontro-me agora sentado num dos bancos de pedra existentes num dos muitos jardins que rodeiam a cidade eterna, e o homenzinho que se barbeava em Londres parece-se com um monte de roupas velhas. Até mesmo Londres se desmoronou. A cidade nada mais é que fábricas em ruínas e alguns gasômetros. Ao mesmo tempo, não me sinto integrado neste ambiente. Vejo padres vestidos de violeta e pitorescas irmãs-de-caridade; reparo apenas no que é exterior. Estou aqui sentado como se fosse um convalescente, como se fosse um qualquer idiota que só consegue articular palavras compostas por apenas uma sílaba. “O sol é bom”, digo. “O frio é mau.” Semelhante a um insecto poisado no cimo da terra, sinto-me andar às voltas, e, aqui sentado, quase podia jurar ser capaz de identificar o movimento de rotação do planeta. Não consigo seguir o caminho oposto ao da terra. Tenho o pressentimento de que se prolongasse esta sensação por mais algumas polegadas acabaria por ir parar a um qualquer território estranho. Porém, não sou muito arrojado. Nunca quero prolongar estes estados de desprendimento; não gosto deles; desprezo-os. Não quero transformar-me em alguém capaz de se sentar no mesmo sítio durante cinquenta anos a viver em função do seu umbigo. Prefiro antes transformar-me numa carroça própria para transportar vegetais, e ser arrastado por caminhos pedregosos.
A verdade é que não pertenço ao gênero dos que se satisfazem com uma pessoa ou com o infinito. Tanto um quarto fechado como o céu me dão as mesmas náuseas. O meu ser apenas brilha quando todas as suas facetas se expõem aos olhares de muita gente. Encho-me de buracos quando o público me falta, diminuindo de volume como se fosse um pedaço de papel queimado. “Oh, Mrs. Moffat, Mrs. Moffat”, digo, “venha varrer tudo isto”. As coisas escaparam-se-me por entre os dedos. Sobrevivi a certos desejos; perdi amigos, alguns levados pela morte – o Percival – outros por não me ter dado ao trabalho de atravessar a rua. Não sou tão dotado como em tempos pensei. Certas coisas estão para lá do meu alcance. Nunca conseguirei entender os problemas filosóficos mais difíceis. Roma é o limite da minha viagem. Semelhante a uma gota adormecida, sou por vezes sobressaltado pela ideia de que nunca verei os selvagens do Taiti arpoando peixes à luz dos lampiões, nem mesmo leões a saltar na selva e homens nus a comer carne crua. Nunca aprenderei russo ou lerei os Vedas. Nunca voltarei a ir bater com força contra o marco-postal. (Contudo, e devido à violência do embate, a minha noite é magnificamente iluminada com algumas estrelas.) Todavia, e à medida que vou pensando, a verdade está cada vez mais próxima. Foram muitos os anos em que murmurei com complacência: “Os meus filhos... a minha mulher... a minha casa... o meu cão”. Assim que abria a porta, deixava-me levar por todos esses rituais familiares, envolvendo-me no seu calor. Porém, esse véu carinhoso caiu. Deixei de ter sentimentos de posse. (Nota: em termos de refinamento físico, uma lavadeira italiana ocupa a mesma posição que a filha de um qualquer duque inglês.) Mas deixa-me pensar. A gota cai; atingiu-se outra etapa. Etapa após etapa. E por que razão deveriam estas terminar? E até onde nos levam elas? A que conclusão? O certo é que envergam trajes solenes. Quando confrontados com estes dilemas, os crentes consultam estes indivíduos trajados de violeta e aspecto sensual que por mim vão passando. Pela parte que nos toca, não gostamos de professores. Se um homem se levantar e disser: “Olhem, esta é a verdade”, nesse mesmo instante, e à laia de pano de fundo, vejo um gato cor de areia a roubar uma posta de peixe. “Repare, esqueceu-se do gato”, digo. Era por isso que, na escola, quando estávamos na capela mal iluminada, a visão do crucifixo usado pelo professor tanto irritava o Neville. Eu, que estou sempre distraído, quer seja a olhar para os gatos ou para aquela abelha que não pára de zumbir em torno do bouquet que Lady Hampton insiste em manter colado ao nariz, de pronto invento uma história que acaba por obliterar os ângulos do crucifixo. Inventei milhares de histórias. Enchi inúmeros blocos de apontamentos com frases prontas a serem usadas assim que encontrasse a história verdadeira, a história à qual todas as frases se referem. No entanto, nunca a descobri. Foi então que comecei a perguntar: “Será que existem histórias?”.
A partir deste terraço, repara na multidão que fervilha a teus pés. Repara na azáfama geral e no barulho. Aquela mula está a dar problemas ao condutor. Meia dúzia de vagabundos bem intencionados oferecem os seus préstimos. Outros passam sem olhar. Têm tantos interesses como os fios de uma meada. Repara no arco formado pelo céu, curvado por sobre as nuvens brancas. Imagina a mistura composta pelos prados, aquedutos e estradas, e também túmulos romanos destruídos, tudo isto na zona de Champagna, e para lá desta o mar, e depois ainda mais terra e mais mar. Poderia isolar qualquer pormenor deste quadro – por exemplo, a carroça e a mula – e descrevê-lo com o maior dos à-vontades. Mas por que razão perder tempo a descrever um homem atrapalhado com uma mula? Poderia também inventar histórias da rapariga que vem a subir os degraus. Encontrou-se com ele à sombra de um arco... “Está tudo acabado”, disse ele, desviando-se da gaiola onde se encontrava um papagaio de louça. Ou apenas: “Acabou-se”. Mas para quê impor as minhas concepções arbitrárias? Para quê realçar isto, moldar aquilo e construir figurinhas semelhantes aos brinquedos que os vendedores ambulantes exibem pelas ruas? Para quê escolher isto entre uma infinitude de coisas – apenas um pormenor?