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Aqui estou, em pleno processo de mudar de pele e tudo o que dirão será: “O Bernard está a passar dez dias em Roma”. Aqui estou eu, a subir e a descer este terraço sem qualquer ponto de referência. Contudo, reparem como, à medida que caminho, os pontos e os traços se vão transformando em linhas contínuas, no modo como as coisas vão perdendo a identidade separada que as caracterizava quando subi os degraus. O enorme vaso vermelho é agora uma mancha encarniçada vogando num mar cuja coloração oscila entre o vermelho e o amarelo.

O mundo começa a mover-se como as vedações se movem quando o comboio parte, ou como as ondas do mar ao tentarem acompanhar os movimentos de um barco a vapor. Eu também me movo. Começo a fazer parte da sequência geral em que uma coisa se sucede a outra, e parece ser inevitável que àquela árvore se siga o poste do telégrafo, e só depois o intervalo na vedação. E, à medida que avanço, rodeado, incluído e fazendo parte de um todo, começam-se a formar as frases habituais, e sinto vontade de as deixar escapar pelo alçapão que tenho na cabeça, e dirigir os passos na direcção daquele homem, cuja parte posterior da cabeça não deixa de me parecer familiar. Andamos juntos na escola. Não tenho dúvidas de que nos encontraremos. Por certo, jantaremos juntos. Falaremos. Mas espera, espera um momento.

Estes instantes de evasão não devem ser desprezados. É com pouca frequência que ocorrem. O Taiti torna-se possível. Inclino-me no parapeito e vejo uma vastidão de água. De súbito, eis que surge uma barbatana. Esta impressão visual não se encontra ligada a qualquer linha racional, surge como uma barbatana de golfinho no horizonte. É com frequência as impressões visuais transmitirem umas quantas ideias breves, as quais o tempo se encarregará de decodificar e traduzir em palavras. Sendo assim, anoto na letra B a seguinte frase: “Barbatana num deserto aquático”. Eu, que estou permanentemente a tomar notas nas margens da mente com vista à elaboração de uma frase final, registro esta entrada, à espera de uma noite invernosa.

De momento, o melhor que tenho a fazer é ir almoçar a algum lado, erguer o copo, olhar através do vinho e ver mais do que aquilo que me é permitido pelo distanciamento que me caracteriza. E, quando uma mulher bonita entrar no restaurante e abrir caminho entre as mesas, direi para mim mesmo: “Reparem como ela caminha ao encontro de um deserto aquático”. Trata-se de uma observação sem sentido, mas para mim é algo de solene, plúmbeo, com o som fatal dos mundos a ruir e das águas caminhando para a destruição.

Assim sendo, Bernard (é contigo que falo, tu, meu companheiro de aventuras), vamos começar este novo capítulo e observar a formação desta nova experiência – desta nova gota – qualquer coisa de desconhecido, de estranho, impossível de ser identificado e igualmente terrível, e que está prestes a se formar. Aquele homem chama-se Larpent.

– Nesta tarde quente – disse Susan –, aqui neste jardim, aqui, neste prado onde falo com o meu filho, alcancei o ponto mais alto dos meus desejos. A dobradiça do portão tem ferrugem; ele puxa-a para a abrir. As paixões violentas características da infância, as lágrimas que chorei no jardim quando a Jinny beijou o Louis, a raiva que me invadia na escola (que cheirava a pinho), a solidão que sentia em locais desconhecidos, quando os cascos das mulas batiam de encontro ao chão e as mulheres italianas falavam junto à fonte, embrulhadas em xales e com cravos espetados nos cabelos, tudo isto foi recompensado por um sentimento de segurança, posse, familiaridade. Conheci anos produtivos, calmos. Possuo tudo o que vejo. Assisti ao crescimento das árvores que plantei. Construí pequenos lagos onde os peixes dourados se escondem por baixo das folhas largas dos lírios. Coloquei redes por sobre os canteiros de morangos e alfaces, e coloquei as peras e as ameixas em sacos brancos impedindo assim que as vespas as picassem. Vi os meus filhos e filhas, também eles outrora protegidos por rede quando ainda não se levantavam dos berços, crescerem até se tornarem mais altos que eu e projectarem grandes sombras na erva quando caminham a meu lado.

Pertenço aqui. Semelhante às minhas árvores, é aqui que tenho raízes. Uso frases como “meu filho”, e “minha filha”, e até mesmo o dono da loja de ferragens, erguendo os olhos do balcão cheio de pregos, tintas e redes, respeita o velho carro que se encontra estacionado à sua porta, repleto de redes para caçar borboletas, almofadas e cortiços. No Natal, penduramos visco branco por cima do relógio, pesamos as nossas amoras e cogumelos, contamos os frascos de compota, e colocamo-nos junto à veneziana da janela da sala para sermos medidos. Também faço coroas mortuárias com flores brancas e folhas prateadas, às quais junto um cartão lamentando a morte do pastor; enviando condolências à mulher do carreteiro morto; e sento-me junto ao leito das mulheres moribundas que murmuram os últimos terrores e se agarram com força à minha mão; frequento divisões intoleráveis para quem não tenha nascido no campo, acostumado à vida na quinta, às lixeiras e às galinhas a esgaravatar, e à mãe que tem apenas dois quartos e muitos filhos para criar. Vi janelas partirem-se devido ao calor, e senti nas narinas o cheiro das fossas. Pergunto-me agora, de tesoura de podar nas mãos e por entre as flores, por onde poderá entrar a sombra. Que choque será capaz de libertar a minha vida, tão laboriosamente unida e comprimida? Mesmo assim, dias há em que estou cansada da felicidade natural, dos frutos a crescer e das crianças enchendo a casa com remos, espingardas, caveiras, livros ganhos em concursos, e toda a espécie de troféus. Estou farta do meu corpo, farta do modo laborioso como trabalho, dos modos pouco escrupulosos característicos da mãe que protege, que reúne os filhos à mesa quando chega a hora das refeições, fitando-os de forma possessiva.

E quando chega a Primavera, com os seus aguaceiros frios e flores amarelas, que, ao olhar para a carne e ao apertar com força os saquinhos dourados das sultanas, me lembro do modo como o Sol se erguia, as andorinhas vasculhavam a erva, das frases inventadas pelo Bernard quando éramos crianças, das folhas que sobre nós caíam, brilhantes, luminosas, riscando o azul do céu, projectando luzes tremulas nas raízes esqueléticas das faias onde me sentava a soluçar. O pardal levantou voo. Ergui-me de um salto e comecei a perseguir as palavras que insistiam em correr à minha frente, sem parar de subir, escapando-se por entre os ramos. Então, tal como acontece com a superfície vidrada de uma tigela, a fixidez da minha manhã quebrou-se, e, poisando as sacas de farinha, pensei: “A vida aperta-se em meu redor como uma redoma de vidro cercando um canavial”.

Peguei na tesoura e cortei algumas malvas, eu, que já estive em Elvedon, pisei bolotas podres, vi uma dama a escrever no jardim e os jardineiros com as suas vassouras. Vimo-nos obrigados a fugir, arquejando, caso contrário seríamos mortos e pregados ao muro como doninhas. Agora, calculo e encarrego-me de manter as coisas. À noite, sento-me no cadeirão e estendo a mão para a costura; ouço o meu marido ressonar; levanto os olhos quando as luzes dos carros que vão passando iluminam as janelas e sinto as ondas da vida agitarem-se e quebrarem-se em meu redor, eu, que estou presa pelas raízes; ouço grilos e vejo as vidas alheias rodopiarem como palhinhas em torno dos pilares das pontes. Tudo isto acontece à medida que enfio e puxo a agulha, construindo um bordado no tecido de algodão branco.