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Mas é então que a Rhoda, ou talvez seja o Louis, não importa, trata-se de um espírito austero e angustiado, entra e volta a sair. Querem enredo, não querem? Querem uma razão? Esta cena vulgar não lhes basta? Não lhes basta esperar que as palavras sejam pronunciadas como se tivessem sido escritas; verem a forma encaixar no sítio que lhes foi previamente destinado; aperceberem-se de súbito de um grupo recortando-se contra o céu. Contudo, se o que querem é violência, em todas as salas vi mortes, crimes e suicídios. Este entra, aquele sai. Há soluços na escada. Ouvi frios quebrarem-se e o som de linhas unindo-se em nós no pedaço de cambraia branca que aquela mulher tem poisado nos joelhos. Para quê, e à semelhança do que acontece com o Louis, querer encontrar um motivo, ou ainda, tal como a Rhoda, voar até aos bosques e afastar as folhas dos loureiros à procura de estátuas? Dizem que devemos enfrentar a tempestade acreditando que o Sol brilha do outro lado; que o Sol se reflecte em lagos cobertos de andorinhas. (Estamos em Novembro; os pobres seguram caixas de fósforos nos dedos roídos pelo vento.) Dizem que só aí se poderá descobrir a verdade, e que a virtude (que aqui se deixa corromper nos becos) apenas lá é perfeita. A Rhoda passa por nós de pescoço estirado, um brilho fanático e cego no olhar. O Louis, agora tão corpulento, sobe até ao sótão, coloca-se à janela, e fica a observar o ponto por onde ela desapareceu. Contudo, vê-se obrigado a se sentar no escritório, rodeado de máquinas de escrever e telefones, e descobrir tudo o que é necessário à nossa reabilitação, e à reforma de um mundo que ainda não nasceu.

Todavia, nesta sala onde entro sem bater, as coisas dizem-se como se tivessem sido escritas. Dirijo-me para a estante. Se me apetecer, leio meia página de qualquer coisa. Não preciso falar. Escuto. Estou incrivelmente alerta. Claro que qualquer um pode ler este poema sem grandes esforços. É com frequência a página encontrar-se corrompida e manchada de lama, rasgada e unida com folhas de coloração desmaiada, com pedacinhos de verbena ou gerânio. Para se ler este poema é preciso ter-se olhos ultra-sensíveis, semelhantes àquelas lâmpadas que, a meio da noite, iluminam as águas do Atlântico, quando apenas só um punhado de algas se encontra à superfície, ou, sem que nada o fizesse esperar, as ondas se abrissem e um monstro surgisse por entre elas. É preciso pôr de lado invejas e antipatias e não interromper. É preciso ter paciência e um cuidado infinito, deixando que a luz descubra as coisas só por si, quer se trate das patas delicadas das aranhas percorrendo uma folha, ou o som da água a escoar-se por um qualquer esgoto sem importância.

Nada deverá ser rejeitado por medo ou horror. O poeta que escreveu esta página (aquilo que leio enquanto os outros falam) retirou-se. Não existem vírgulas nem pontos e vírgulas. Os versos não se sucedem com a métrica conveniente. A maior parte das coisas não faz sentido. Temos de ser cépticos, mas isso não quer dizer que não deitemos as precauções para trás das costas e não aceitemos tudo o que nos entra pela porta. Há vezes em que devemos chorar; outras, servimo-nos de um machado para cortar de forma impiedosa todo o tipo de cascas e outras excrescências. E assim (enquanto eles falam) deixar a rede mergulhar cada vez mais fundo, só depois a puxando. É então que trazemos à superfície tudo o que ele e ela disseram, fazendo poesia.

Já os ouvi falar. Foram-se todos embora. Estou só. O facto de poder ver o fogo consumir-se eternamente, como uma caldeira, como uma fornalha, deveria alegrar-me. Agora, um pedaço de madeira assemelha-se a um cadafalso, a um poço, ou ao vale da felicidade; agora é uma serpente vermelha com escamas brancas. Junto ao bico do papagaio, o fruto que enfeita o cortinado parece aumentar de volume. O lume zumbe, lembrando insectos a zumbir na floresta. Não pára de crepitar. Enquanto isso, lá fora os ramos quebram-se, e, provocando um ruído semelhante ao de um tiro, uma árvore cai. São estes os sons da noite de Londres. É então que ouço aquilo por que esperava. Aproxima-se cada vez mais, hesita, pára à minha porta. Grito: “Entra. Senta-te junto a mim. Senta-te à beira do cadeirão”. Deixando-me levar por esta velha fantasia, grito: “Aproxima-te, aproxima-te!”.

– Estou de volta ao escritório – disse Louis. – Penduro o casaco aqui, coloco a bengala ali – gosto de imaginar que Richelieu se apoiou na minha bengala. E assim me despojo da autoridade que possuo. Passei o dia sentado à direita do director, na mesa envernizada. Os mapas dos nossos empreendimentos bem sucedidos olham-nos da parede. Unimos o mundo com os navios da companhia. Só as nossas linhas mantêm o mundo unido. Sou muitíssimo respeitado. Todos os jovens que trabalham no escritório se apercebem da minha entrada. Posso jantar onde quiser, e, sem revelar qualquer vaidade, imaginar que já falta pouco para que possa adquirir uma casa no Surrey, dois automóveis, e uma estufa com algumas espécies raras de melão. Apesar disto, continuo a voltar a este salão, a pendurar o chapéu, e, na mais completa solidão, reiniciar a curiosa tentativa que me mantém ocupado desde o dia em que bati à porta da sala do meu mestre. Abro um livrinho. Leio um poema. Basta apenas um poema.

Oh, vento oeste...

“Oh, vento oeste, tu que estás em luta constante com a minha mesa de mogno e os polainitos que uso, e também, como não podia deixar de ser, com a vulgaridade da minha amante, uma actrizinha que nunca conseguiu falar inglês correctamente...”

Oh, vento oeste, quando irás soprar...

A Rhoda, com a sua enorme capacidade de abstracção, com aqueles olhos cegos, de cor indefinida, é incapaz de te destruir, vento oeste, quer venha à meia-noite, quando as estrelas brilham, ou à hora bastante mais prosaica do meio-dia. Deixa-se ficar à janela a olhar os cataventos e as vidraças partidas das casas dos pobres... Oh, vento oeste, quando irás soprar...

A minha tarefa, o meu fardo, tem sido sempre maior que o das outras pessoas. Colocaram-me uma pirâmide nos ombros. Tentei desempenhar uma tarefa colossal. Derrotei uma equipa violenta, desordenada e amiga de fazer jogo sujo. Com o meu sotaque australiano, sentei-me nos restaurantes e tentei fazer com que os criados me aceitassem, sem, no entanto, esquecer as minhas mais solenes e severas convicções, bem assim como as discrepâncias e incoerências que tinham de ser resolvidas. Enquanto rapaz, e muito embora sonhasse com o Nilo e me mostrasse relutante em acordar, consegui bater à porta construída de madeira de carvalho. Teria sido muito mais feliz se, à semelhança da Susan e do Percival, a quem tanto admiro, tivesse nascido sem destino.

Oh, vento oeste, quando irás soprar, fazendo assim cair a chuvinha miudinha?

A vida não tem sido fácil para mim. Sou uma espécie de aspirador gigante, uma boca gelatinosa, aderente, insaciável. Tentei desalojar da carne a pedra que aí se alojara. Foi pouca a felicidade natural que conheci, muito embora tenha escolhido a minha amante de forma a que, com o seu sotaque cockney me fizesse sentir à vontade. Porém, ela limita-se a espalhar pelo chão uma série de roupa interior pouco limpa, e a mulher da limpeza e os marçanos não param de falar a meu respeito durante o dia, troçando do meu porte altivo e empertigado.

Oh, vento oeste, quando irás soprar, fazendo assim cair a chuvinha miudinha?

Afinal, que tem sido o meu destino, a pirâmide pontiaguda que trago aos ombros ao longo de todos estes anos? Que me lembre do Nilo e das mulheres transportando ânforas à cabeça; que me sinta parte dos verões e invernos que fazem ondular o milho e gelar os rios? Não sou um ser singular e passageiro. A minha vida não se assemelha ao brilho momentâneo que ocorre na superfície de um diamante. Penetro no solo de forma tortuosa, semelhante ao carcereiro que percorre as celas transportando uma lanterna. O meu destino traduz-se pela obrigação de jantar, de unir, de transformar em um todos os fios existentes no mundo, os mais finos, os mais grossos, os que se partiram, tudo o que constitui a nossa longa história, os nossos dias tumultuosos e variados. Há sempre algo mais para ser compreendido; uma discórdia a que dar ouvidos; uma falsidade a ser reprimida. Estes telhados de telhas soltas, gatos escanzelados e águas-furtadas, todos eles estão quebrados e cheios de fuligem. Abro caminho por sobre vidros partidos, azulejos riscados, e apenas vejo rostos vis e famintos.