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Vamos supor que consigo resumir tudo isto – escrevo um poema e depois morro. Posso garantir-vos que não o faria de má vontade. O Percival morreu. A Rhoda deixou-me. Contudo, sei que viverei de forma muito respeitável, abrindo caminho com a minha bengala de castão dourado por entre as ruas da cidade. Talvez nunca chegue sequer a morrer, nunca consiga atingir essa continuidade e permanência... Oh, vento oeste, quando irás soprar, fazendo assim cair a chuvinha miudinha?

O Percival estava coberto de folhas verdes e desceu à terra com todos os ramos a murmurar ainda de acordo com a brisa estival. A Rhoda, com quem partilhava o silêncio quando todos os outros falavam, ela, que se retraía e desviava quando a manada se reunia e marchava ordeiramente rumo às ricas pastagens, desapareceu como uma miragem. É nela que penso quando o sol incendeia os telhados da cidade; quando as folhas secas caem ao chão; quando os velhotes se aproximam com as bengalas pontiagudas e furam os pequenos pedaços de papel do mesmo modo que nós fazíamos com ela...

Oh, vento oeste, quando irás soprar, fazendo assim cair a chuvinha miudinha? Oh, meu Deus, como era bom o meu amor estar nos meus braços, E eu de volta ao leito!

Regresso ao meu livro; regresso à minha tentativa.

– Oh, vida, como te tenho odiado – disse Rhoda –, oh, seres humanos, como vos tenho detestado! O modo como se têm acotovelado, a forma como têm interrompido, o aspecto hediondo que apresentam em Oxford Street, o ar esquálido que tinham, sentados em frente uns aos outros no metropolitano, fixando o vazio! Agora, à medida que subo esta montanha, no cimo da qual avistarei África, a minha mente está repleta de embrulhos compostos por papel castanho e pelos vossos rostos. Vocês mancharam-me e corromperam-me. Para mais, nas filas que formavam junto às bilheteiras, desprendia-se dos vossos corpos um odor desagradável.

Estavam todos vestidos em tons de castanho e cinzento, sem que nos vossos chapéus se verificasse a presença de uma simples pena azul. Ninguém tinha coragem de ser diferente daquilo que era. Para chegarem ao fim do dia, imagino até que ponto a vossa alma teve de enfrentar um processo de dissolução, as mentiras, vénias, galanteios e actos de servilismo por vós levados a cabo! A forma como me amarraram a um único ponto, a uma cadeira, durante uma hora, e se sentaram do lado oposto! A forma como me arrancaram os espaços em branco que dividem as horas e os transformaram em bolinhas sujas, as quais depois atiraram para o cesto dos papéis com as vossas patas gordurosas!

No entanto, submeti-me. Com a mão, cobri todos os bocejos e caretas. Não saí para a rua e parti uma garrafa de encontro à valeta em sinal de protesto. Tremendo de raiva, tentei mostrar que não estava surpreendida. Aquilo que faziam estava feito. Se a Susan e a Jinny puxavam as meias de uma determinada forma, então eu fazia o mesmo. A vida era tão terrível, que apoiei as sombras umas nas outras. Olhei a vida desta e daquela maneira; deixei que ali houvessem folhas de rosa e ali parras de videira – percorri a rua inteira, Oxford Street, Piccadilly Circus, com o turbilhão existente no meu espírito, com as parras e as folhas de rosa. Haviam também malões, os quais se encontravam à porta da escola no primeiro dia de aulas. Esgueirava-me em segredo para ler as etiquetas e sonhar a respeito de nomes e rostos. Talvez Harrogate, talvez Edimburgo, talvez toda a glória destes locais estivesse concentrada no ponto onde se podia ver uma qualquer rapariga, cujo nome já esqueci. Mas tratava-se apenas do nome. Abandonei o Louis; receava abraços. Com que vestes, com que velas, tentei ocultar a lâmina azul-escura? Implorei ao dia para que se revelasse durante a noite. Ansiei ver o armário mover-se, sentir a cama tornar-se mais macia, flutuar nos ares, avistar árvores e rostos distantes, um pântano rodeado por uma faixa de terreno verde, e duas figuras alteradas despedindo-se. Atirei as palavras aos montes, qual agricultor espalhando as sementes pelos campos arados quando a terra está nua. O meu maior desejo sempre foi o de aumentar a noite para a conseguir encher de sonhos.

Então, num qualquer festival, separei os fios condutores da música e descobri a casa que tínhamos construído: o quadrado em cima do rectângulo. “Está tudo contido nesta casa”, disse, ao mesmo tempo que ia sendo atirada contra os ombros das pessoas que seguiam no mesmo autocarro, logo após a morte do Percival. Acabei por ir para Greenwich. Enquanto caminhava pelo paredão, rezei para que me pudesse sempre manter nos limites do mundo, nos locais onde não há vegetação, mas sim uma ou outra coluna de mármore. Atirei o ramo de flores contra a onda que alastrava. Disse: “Consome-me, leva-me até ao fim dos limites”. A onda rebentou; o ramo murchou.

São poucas as vezes em que penso no Percival.

Vou agora a subir esta colina espanhola, e não tenho qualquer dificuldade em achar que esta mula é a minha cama, e que já morri. Apenas uma película muito fina me separa das profundezas infinitas. O coxim vai-se tornando mais mole. Vamos subindo aos tropeções – avançamos aos tropeções. Tenho vindo sempre a subir, rumo a uma árvore solitária com um pequeno lago junto a si. Naveguei pelas águas da beleza na noite em que as montanhas se fecharam sobre si mesmas, semelhantes a aves que encolhem as asas. Apanhei um ou outro cravo e hastes de feno. Deixei-me cair na turfa, toquei com os dedos num osso velho, e pensei: “Quando o vento fustiga este monte, talvez que aqui só se consiga encontrar um grão de poeira”.

A mula tropeça e vai avançando. O cume da colina eleva-se como nevoeiro, mas lá de cima poderei ver África. A cama acaba por ceder debaixo do meu peso. Os lençóis salpicados de buracos amarelos deixam-me cair. A boa mulher, cuja face lembra um cavalo branco e que se encontra aos pés da cama, faz um gesto de despedida e vira-me as costas. Sendo assim, quem me irá acompanhar? Apenas as flores, nada mais. Apanhando-as uma a uma, fiz com elas uma coroa e ofereci-as – oh, a quem? Avançamos agora pelo precipício. Aos nossos pés vêem-se as luzes dos barcos que pescam arenques. Os rochedos desaparecem. Pequenas e cinzentas, são muitas as ondas que se espalham aos nossos pés. Nada toco. Nada vejo. Podemo-nos afundar e ir para o meio das ondas. O mar produziria toda a espécie de sons nos meus ouvidos. A água salgada escureceria as pétalas brancas. Flutuariam durante alguns instantes, acabando por se afundar. Fazendo-me rebolar por sobre elas, as ondas acabariam por me servir de suporte. Tudo se desfaz numa tremenda quantidade de salpicos, dissolvendo-me. Contudo, aquela árvore possui ramos; e aquilo mais não é que o contorno bem definido do telhado de uma casa de campo. Aquelas formas pintadas de vermelho e amarelo afinal são rostos. Ponho os pés no chão e começo a andar com cautela, até acabar por colocar a mão contra a porta dura de uma estalagem espanhola.

O Sol estava a pôr-se. A pedra dura que constituía o dia estava-se a partir, e a luz escoava-se por todas as fendas. As ondas eram percorridas por raios vermelhos e dourados, semelhantes a flechas enfeitadas de penas escuras. Raios esporádicos de luz brilhavam e vagueavam um pouco por toda a parte, como se fossem sinais enviados de ilhas isoladas, ou mesmo dardos lançados por rapazes brincalhões e sem vergonha. Todavia, as ondas, ao se aproximarem da praia, já não possuíam qualquer tipo de luz, caindo todas ao mesmo tempo com um baque surdo, tal como um muro a cair, um muro de pedra cinzenta, sem que qualquer brilhozinho as iluminasse.

Elevou-se uma brisa; as folhas foram percorridas por um tremor; e, ao serem agitadas, perderam a intensidade castanha que as caracterizava, adquirindo tons cinzentos ou brancos consoante a direcção em que as árvores se moviam. O falcão poisado no ramo superior pestanejou por alguns instantes, levantou voo e afastou-se. A tarambola selvagem que vagueava pelos pântanos não parava de gritar, proclamando aos quatro ventos a sua solidão. O fumo dos comboios e das chaminés como que se desfiava, fundindo-se com as velas que pairavam por sobre o mar e os campos.