O milho já fora cortado. O restolho era tudo o que restava da agitação que antes ali se vivera. Devagar, um mocho elevou-se do ulmeiro em que estava poisado, indo aterrar num cedro. Nas montanhas, as sombras lentas ora se alargavam ora encolhiam. O lago existente na parte mais alta da charneca era um buraco vazio. Nenhum focinho peludo ali se reflectia, casco algum ali batia, e nem mesmo os animais sequiosos ali procuravam água. Uma ave, empoleirada num ramo cor de cinza, encheu o bico de água fria.
Não se ouvia o som das ceifeiras nem o ruído das rodas, mas apenas o súbito rugir do vento a enfunar as velas, com isso fustigando as copas das árvores. Via-se ali um osso, objecto de tal forma marcado pela chuva e pelo sol, que emitia um brilho semelhante ao de uma concha polida pelo mar. A árvore, que na Primavera apresentava uma coloração avermelhada e que no Verão deixava o vento sul agitar as folhas sensíveis, apresentava-se agora tão negra e despida como uma barra de ferro.
A terra encontrava-se tão longe que era impossível distinguir os brilhos de um telhado ou de uma janela. O tremendo peso da terra sombria arrastara consigo estas frágeis cadeias, todas estas conchas embaraçadas. Via-se a sombra líquida de uma nuvem, o bater da chuva, um raio solitário de sol, ou o riscar inesperado dos relâmpagos. Semelhantes a obeliscos, árvores solitárias marcavam as colinas distantes.
O sol poente, despojado de calor e cada vez menos intenso, suavizava as mesas e as cadeiras enfeitando-as de losangos castanhos e amarelos. Separadas por sombras, o seu peso parecia maior, como se a cor, inclinando-se, se tivesse concentrado num único lado. As facas, garfos e copos pareciam agora mais alongados, como que inchados e mais imponentes. Rodeado por um círculo vermelho, o espelho imobilizava a cena como que para todo o sempre.
Enquanto isso, as sombras alongavam-se na praia; a escuridão aumentava. A bota de ferro negro era agora uma mancha azul profunda. As rochas já não eram duras. A água que rodeava o velho barco era escura, como que repleta de mexilhões. A espuma era lívida, deixando aqui e ali um brilho prateado na areia enevoada.
– Hampton Court – disse Bernard. – Hampton Court. É aqui o nosso ponto de encontro. Reparem nas chaminés vermelhas, nas ameias quadradas de Hampton Court. O tom de voz que utilizo para pronunciar Hampton Court serve para provar que sou um indivíduo de meia-idade. Há dez, quinze anos atrás, teria dito Hampton Court, ou seja, na interrogativa, perguntando-me o que lá poderia encontrar. Lagos, labirintos? Ou, como quem antecipa algo: O que me irá acontecer uma vez lá chegado? Quem irei encontrar? Agora, Hampton Court, Hampton Court, as palavras chocam contra um gongo suspenso no ar (o qual fiz os possíveis por limpar através de meia dúzia de telefonemas e postais) e ecoam em anéis de som, estrondosos, vibrantes. Tudo isto me traz à mente uma série de imagens (tardes de Verão, barcos, senhoras de idade erguendo as pontas das saias, uma urna no Inverno, os narcisos em Março), tudo isto flutua agora nas águas que se encontram bem no fundo de todas as cenas.
Ali, na porta da estalagem, o local onde nos combinamos encontrar, posso vê-los a todos – Susan, Louis, Rhoda, Jinny e Neville. Chegaram juntos. Dentro de momentos, quando me juntar a eles, formar-se-á um outro arranjo, um outro padrão. Aquilo que agora se desperdiça e forma cenas em profusão, será verificado, organizado. Sinto-me um tanto relutante em me submeter a esta regra. Sinto que a ordem do meu ser irá ser alterada a cinquenta jardas de distância. A força do íman por eles formado faz-se exercer sobre mim. Aproximo-me. Não me vêem. A Rhoda acaba por me descobrir, mas, dado ter um verdadeiro horror ao choque provocado pelos encontros, finge que não passo de um estranho. O Neville volta-se. De súbito, ao levantar a mão para o saudar, grito: “Também coloquei pétalas de flores entre as páginas dos sonetos de Shakespeare”, e mostro-me bastante agitado. Os meus barcos vão vogando ao sabor das ondas. Não existe panaceia (e talvez seja bom tomar nota disto) contra o choque característico dos encontros.
É também pouco agradável termos de juntar pontas rasgadas, cruas. Só aos poucos o encontro se vai tornando agradável, à medida que entramos na estalagem e vamos tirando casacos e chapéus. Sentamo-nos numa sala de jantar enorme e despida, a qual dá para uma espécie de parque, um qualquer espaço verde iluminado de forma esplendorosa pelo sol poente, o que faz com que as árvores estejam separadas por barras douradas.
– Agora, sentados lado a lado nesta mesa estreita – disse Neville –, agora que a primeira vaga de emoções ainda não se esbateu, que sentimentos nos dominam? Com honestidade e de forma aberta e frontal, como convém a velhos amigos que se encontram com dificuldade, quais os sentimentos que o nosso encontro desperta? Pena. A porta não se irá abrir; ele não entrará. E temos pesos às costas, o que acontece com todos os que alcançaram a meia-idade. O melhor será despojarmo-nos dos fardos. Perguntamos uns aos outros o que foi que fizemos da vida. Tu, Bernard; tu, Susan; tu, Jinny; e vocês, Rhoda e Louis?
As listas foram afixadas na porta. Antes de quebrarmos estes rolos e de nos servirmos do peixe e da salada, meto a mão no bolso interior e encontro os documentos que procurava, aquilo que transporto para provar a minha superioridade. Passei. Trago documentos no bolso interior que o podem provar. Mas os teus olhos, Susan, cheios de nabos e milheirais, perturbam-me.
Os papéis que trago no bolso, a prova de que fui bem sucedido, produzem um som bastante fraco, semelhante ao que é provocado por um homem que bate as palmas num campo vazio para assim afugentar as gralhas. Agora, sob o olhar da Susan, os ruídos por mim provocados deixaram de se fazer sentir, e apenas escuto o vento varrendo os campos arados e o canto de uma ave, talvez uma cotovia intoxicada. Será que o criado me escutou, o criado ou aqueles casais furtivos, ora se debruçando e recostando ora olhando para as árvores que ainda não estão suficientemente escuras para proteger os seus corpos prostrados? Não; o som das palmas fracassou.
Que será então que me resta, agora que não posso puxar dos documentos e ler-vos em voz alta a prova de que fui bem sucedido? O que resta é o que a Susan traz à tona com aqueles olhos verdes e amargos, aqueles olhos cristalinos, em forma de pêra. Quando nos juntamos, há sempre alguém que se recusa a ser submergido (e os nossos encontros têm as pontas afiadas); alguém cuja identidade desejamos abafar com o nosso peso. Pela parte que me toca, gostaria de submergir a Susan. Falo para a impressionar. Escuta-me, Susan!
Quando recebo visitas ao pequeno-almoço, até mesmo os frutos bordados nas cortinas parecem inchar, tornando assim possível que os papagaios os agarrem; qualquer um os pode abrir pressionando-os entre os dedos. O leite desnatado da manhã ganha colorações opalinas, azuis, cor-de-rosa. A essa mesma hora, o teu marido – o homem que pôs de parte as palavras e aponta para as vacas estéreis com o chicote – vai resmungando. Tu nada dizes. Nada vês. O hábito torna-te cega. A essa hora, a vossa relação é muda, nula, parda. Nesse mesmo instante, a minha é quente e variada. Desconheço a palavra “repetição”. Os dias são todos perigosos. Lisos à superfície, somos todos feitos de ossos, os quais, e à semelhança das serpentes, se vão contorcendo. Vamos supor que lemos o The Times; vamos supor que discutimos. Trata-se de uma experiência. Suponhamos que é Inverno. A neve vai-se acumulando no telhado e escorregando por ele abaixo, selando-nos numa gruta vermelha. Os canos rebentaram. Pomos uma banheira amarela no meio do quarto. Corremos a procurar todo o tipo de recipientes. Olha para ali – voltou a rebentar junto à escada. A visão da catástrofe faz-nos rir a bom rir. Que se destrua a solidez! Que nos tirem tudo o que temos! Ou será que é Verão? Podemos ir passear para junto de um lago e ver os gansos chineses nadar perto da margem, ou observar uma igreja citadina, semelhante a um osso, bem assim como as árvores tremulas que a rodeiam. (Escolho ao acaso; escolho o que é óbvio.) Todos os sinais são como arabescos destinados a ilustrar um qualquer episódio e a maravilhar-nos no mais íntimo de nós mesmos. A neve, o cano rebentado, a banheira de metal, os gansos chineses – trata-se de sinais erguidos bem alto, bastando-me olhar para eles para ler as características de cada amor; para ver o quanto eram diferentes.