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Entretanto, tu – e é por isso que quero diminuir a tua hostilidade, esses olhos verdes fixos nos meus, o teu vestido pobre, as tuas mãos calejadas, e todos os outros emblemas característicos do teu esplendor maternal – fixaste-te como uma lapa à mesma rocha. Sim, é verdade, não te quero magoar; apenas refrescar e restaurar a crença que nutro em relação a mim mesmo, e que desapareceu quando entraste. Antes, quando nos encontramos num restaurante de Londres com o Percival, tudo fervilhava e se separava em grupos; podíamos ter sido qualquer coisa. Acabamos por escolher (às vezes parece que a escolha foi feita por nós) um par de tenazes, as quais nos foram colocadas entre os ombros. Escolho. Sigo o fio da vida para dentro, e não para o exterior, em direcção a uma fibra crua desprotegida. Sinto-me sufocado e magoado pelas marcas deixadas por mentes, rostos, e outras coisas tão subtis que, muito embora possuidoras de cheiro, cor, textura e substância, não têm nome. Para vocês, que vêem os limites estreitos da minha vida e a linha que ela não pode ultrapassar, não passo do Neville. Contudo, e para mim, não conheço limites; sou uma rede cujas fibras se estendem de forma imperceptível por todas as partes do mundo. É quase impossível distingui-la do que nela se encontra envolvido. Levanta baleias – monstros enormes e alforrecas brancas, tudo o que é amorfo e errante ; detecto; distingo. Por baixo dos meus olhos, abre-se... um livro; vejo o fundo; o coração – observo as profundezas. Sei quais os amores que estão prestes a se incendiar; o modo como a inveja espalha por toda a parte os seus raios verdes; a forma intrincada como os amores se cruzam; como os amores se atam e separam brutalmente. Já estive amarrado; já fui separado.

Mas já conhecemos tempos gloriosos, quando esperávamos que a porta se abrisse e o Percival entrou; quando nos deixávamos cair num qualquer assento existente nas salas públicas.

– Havia o bosque de faias – disse Susan –, Elvedon, e os ponteiros dourados do relógio lançando raios por entre as árvores. Os pardais partiram as folhas. Luzes tremeluzentes pairavam por sobre a minha cabeça. Conseguiram-me escapar.

No entanto, repara bem, Neville (a quem desprezo para que possa ser eu mesma), na minha mão poisada em cima da mesa. Repara nas tonalidades saudáveis que se espalham pelos nós dos dedos e pela pele da palma. O meu corpo é usado diariamente, como um instrumento manejado por um bom jardineiro que dele sabe fazer uso. A lâmina está limpa, afiada, um pouco gasta no centro. (Batalhamos juntos como animais lutando no campo, como veados que fazem bater as hastes umas contra as outras.) Vistas através da carne pálida e flácida, até mesmo as maçãs e os restantes frutos devem dar a sensação de estarem numa redoma de vidro. Enterrados num cadeirão com apenas uma pessoa (mas uma pessoa que muda), vocês limitam-se a ver uma pequena porção de carne; os nervos, as fibras, o fluxo, ora veloz ora lento, do sangue; mas nada vêem por completo.

Não vêem a casa que está no jardim; o cavalo que está no campo; o modo como a cidade está disposta, e tudo porque se curvam como as mulheres idosas que não desviam os olhos da peça que costuram. Todavia, eu vi a vida em blocos, substancial, enorme; as suas ameias e torres, fábricas e gasômetros, uma habitação que vem sendo construída ao longo dos tempos, seguindo um padrão hereditário. Trata-se de coisas que permanecem concretas, definidas, indissolúveis, pelo menos para mim. Não sou sinuosa nem suave; sento-me entre vós enfrentando a vossa apatia com a minha dureza, destruindo os frêmitos das asas cinzentas das vossas palavras, servindo-me para isso da raiva esverdeada dos meus olhos claros.

Acabamos por nos defrontar. Trata-se do prelúdio necessário; da saudação dos velhos amigos.

– O ouro desapareceu por entre as árvores – disse Rhoda –, atrás delas só se vê uma mancha verde, comprida como uma lâmina das facas que vemos nos sonhos, ou uma qualquer ilha onde ninguém pisa. Os carros que descem a avenida começam a escassear. Os amantes podem agora ocultar-se sob o manto da escuridão; os troncos das árvores parecem inchados, obscenos mesmo, pois estão cheios de amantes.

– Houve um tempo em que as coisas eram diferentes – disse Bernard. – Tempos em que podíamos romper as amarras se assim o desejássemos. Quantos telefonemas, quantos postais são agora precisos para romper este buraco no qual nos juntamos, unidos, em Hampton Court? Com que rapidez a vida desliza de Janeiro a Dezembro! Somos arrastados pela corrente composta por toda uma série de coisas que se tornaram demasiado óbvias, familiares, e que já não projectam sombra; não fazemos comparações; pouco pensamos a nosso respeito; e é neste estado de inconsciência que nos libertamos da fricção, rompendo as algas que haviam entupido os desembocadouros dos canais subterrâneos. Para que possamos apanhar o comboio que parte de Waterloo, temos de saltar e de nos elevar nos ares como se fôssemos peixes. E, não importa o quão alto saltemos, acabamos sempre por voltar a mergulhar nas águas. Nunca entrarei naquele navio com destino aos mares do Sul. Roma marcou o limite das minhas viagens.

Tenho filhos e filhas. Semelhante à peça de um puzzle, pertenço a um determinado lugar.

No entanto, trata-se apenas do meu corpo (este homem envelhecido a quem chamam Bernard) que se fixou de forma irrevogável – pelo menos é isso que desejo acreditar. Penso agora de forma mais desinteressada do que a que me caracterizava na juventude, e, para me descobrir, tenho de ir cada vez mais fundo. “Olha, que será isto? E isto? Será que dará um belo presente? Será que é tudo?”, e assim por diante. Sei agora o que está dentro dos embrulhos e não me importo muito. Atiro os pensamentos aos quatro ventos, tal como um homem atira as sementes ao ar, as quais caem por entre a luz do sol-poente, indo cair na terra previamente arada, brilhante e comprimida, onde nada se encontra.

Uma frase. Uma frase imperfeita. E o que são frases? Deixaram-me pouco para colocar no tampo da mesa, junto à mão de Susan; pouco para tirar do bolso, junto com as credenciais do Neville. Não sou nenhum perito em leis, medicina ou economia. Semelhante a uma palha rodeada de água, estou envolvido em frases fosforescentes, emito brilhos. E, sempre que falo, todos sentem: Estou aceso. Estou a brilhar. Quando nos encontrávamos à sombra dos ulmeiros, nos campos de jogos, os rapazinhos costumavam pensar que as frases que saíam dos meus lábios aos borbotões eram bastante boas. Eles próprios se elevavam; também eles se escapavam com as minhas frases. Porém, eu definho na solidão. Esta é a minha ruína.

Vagueio de casa em casa como os frades da Idade Média que enganavam as raparigas e as mulheres casadas com contas e baladas. Sou um viajante, um bufarinheiro, pagando com uma caução a hospitalidade que me oferecem; sou um convidado fácil de agradar; alguém que ora dorme no melhor quarto da casa, na cama de dossel, ora passa a noite no estábulo, deitado num molho de feno. Não me importo com as pulgas, o mesmo se passando com o toque da seda. Tenho uma percepção demasiado clara da perenidade da vida e das tentações que a caracterizam para impor proibições.