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Apesar de tudo, não sou tão tolerante como vos pareço, a vós, que me julgam pela fluência com que me exprimo. Trago escondido na manga um punhal envenenado com desprezo e austeridade. Contudo, estou sempre pronto a me dispersar. Invento histórias. Construo brinquedos a partir do nada. Há uma rapariga sentada à porta de uma vivenda; está à espera; de quem? Seduzida ou não? O director descobre que há um buraco no tapete. Suspira. A esposa, passando os dedos pelas ondas do cabelo, ainda abundante, reflecte – e assim por diante. O ondular de mãos, as hesitações ocorridas nas esquinas, alguém que deixa cair o cigarro na valeta – tudo isto são histórias. Mas qual delas é a verdadeira? Isso não sei. É por isso que penduro as frases, como se estivessem num roupeiro à espera que alguém as use. E assim, esperando, especulando, tomando nota disto ou daquilo, não me agarro à vida. Serei arrastado como uma abelha que zumbe junto aos girassóis. A minha filosofia, sempre a se acumular, a crescer de momento a momento, espraia-se em simultâneo nas mais diversas direcções. Porém, o Louis, austero, se bem que de olhar selvagem, no sótão, no escritório, chegou a conclusões inalteráveis sobre a verdadeira natura daquilo que há a saber.

– Quebrou-se – disse Louis. – A teia que tentei tecer acabou de se quebrar. Foram as vossas gargalhadas, a vossa indiferença, e também a vossa beleza, que a quebraram. A Jinny partiu o fio há muitos anos, quando me beijou no jardim. Os gabarolas troçavam de mim na escola por falar com sotaque australiano, e também o partiram. É este o significado, disse, e foi então que um baque me fez parar – vaidade. Escutem, disse, escutem o rouxinol que canta mesmo aos vossos pés; as conquistas e as migrações. Acreditem e é então que sou como que posto de lado. Opto por viajar por sobre telhas partidas e vidros estilhaçados. São muitas as luzes que tombam sobre mim, tornando estranho um simples leopardo. Este momento de reconciliação, quando nos unimos mais uma vez, este momento nocturno, com o seu vinho e folhas tremulas, e jovens subindo a margem do rio, vestidos de flanela e transportando almofadas, dizia, este momento está obscurecido com as sombras dos calabouços e das torturas praticadas por alguns homens contra outros homens. Tenho os sentidos tão imperfeitos que não consigo ocultar os ataques bastante graves que, em termos racionais, vou fazendo contra todos nós, mesmo quando aqui estamos sentados. Pergunto a mim mesmo e à ponte qual será a solução. Como poderei reduzir estas vertigens, estas aparições bailarinas, a uma linha capaz de as unificar? E é nisto que vou pensando. Entretanto, vocês observam com malícia o modo como comprimo os lábios, as minhas faces macilentas, e as rugas que se formam na minha testa.

Todavia, peço-vos também para repararem na bengala e no colete. Herdei uma secretária de mogno e um gabinete repleto de mapas. Os nossos navios alcançaram uma reputação invejável devido às suas cabinas luxuosas. Fornecemos piscinas e ginásios. O colete que uso é branco e consulto sempre a agenda antes de aceitar qualquer compromisso.

É este o escudo e a forma irônica através da qual espero desviar as atenções de todos vós da minha alma trêmula, meiga, e infinitamente jovem e desprotegida. O certo é que sou sempre o mais novo; o que se surpreende da forma mais ingênua; o que se oferece para ir à frente, mas sempre com medo de parecer ridículo – não vá ter o nariz sujo ou um botão desapertado. Sofro em mim todas as humilhações. Apesar disso, também consigo ser impiedoso, duro. Não entendo quando vos ouço dizer que a vida vale a pena ser vivida. As vossas pequenas alegrias, os vossos transportes infantis, os quais ocorrem quando a chaleira ferve, quando a brisa levanta o lenço da Jinny e o faz flutuar como se de uma teia de aranha se tratasse, são para mim idênticos a véus de seda, com os quais se tenta tapar os olhos dos touros enraivecidos. Condeno-vos. Porém, o meu coração precisa de vós. Convosco seria até capaz de atravessar as fogueiras da morte. Mesmo assim, sou mais feliz quando estou só. Adoro vestir de ouro e púrpura. Apesar disso, prefiro olhar os contornos das chaminés; os gatos coçando os flancos escanzelados; as janelas partidas; e o ruído duro e seco provocado pelos sinos que tocam numa qualquer capela de tijolo.

– Vejo o que tenho à frente – disse Jinny. – Este lenço, estas manchas cor de vinho. Este copo. Esta jarra cor de mostarda. Esta flor. Gosto do que pode ser tocado, saboreado. Gosto da chuva depois de ela se ter transformado em neve e ganho gosto. E, dado ser mais brusca e muito mais corajosa que todos vós, não considero a minha beleza mesquinha, caso contrário queimar-me-ia. Assumo-a por inteiro. É feita de carne; é feita de matéria. Só conheço a imaginação do corpo. As suas visões não são tão finas nem tão imaculadamente brancas como as do Louis. Não gosto de gatos magros e das tuas chaminés rachadas. As belezas desagradáveis dos teus telhados repelem-me. Delicio-me com a visão de homens e mulheres de uniforme, perucas e capas, chapéus de coco e camisolas pólo, e a incrível variedade de vestidos femininos (reparo sempre em todas as roupas). É com eles que me misturo, que entro e saio de salas, salões, deste ou daquele lugar. É com eles que vou para toda a parte. Este homem levanta o casco de um cavalo. Aquele abre e fecha as gavetas onde guarda as suas colecções. Nunca estou só. Vivo rodeada por indivíduos que me são semelhantes. A minha mãe deve ter seguido o tambor, o meu pai o mar. Sou como um cachorro que desce a rua atrás da banda do regimento, mas que pára para cheirar o tronco de uma árvore, esta ou aquela mancha castanha, e que de súbito corre atrás de um rafeiro qualquer, acabando por levantar uma pata ao sentir o cheiro a carne que lhe chega do talho. As minhas viagens levaram-me a locais estranhos. Foram muitos os homens que passaram através do muro e vieram ter comigo. Bastou-me levantar a mão. Em linha recta, semelhantes a dardos, vieram encontrar-se comigo no local devido, talvez uma cadeira colocada na varanda, talvez uma loja de esquina. Os tormentos, as divisões típicas foram por mim resolvidas noite após noite, às vezes apenas devido ao toque de um dedo por baixo da toalha, o meu corpo tornou-se tão fluido, que basta o toque de um dedo para se transformar numa única gota, a qual se enche, estremece, reluz, e acaba por cair, em êxtase.

Tenho-me sentado frente ao espelho do mesmo modo que vocês se sentam a escrever e a fazer contas. Assim, em frente ao espelho que se encontra no templo constituído pelo meu quarto, analisei os olhos e o queixo que nele se reflectiam; aqueles lábios que se abrem de mais, revelando grande parte das gengivas. Tenho olhado. Tenho reparado. Tenho escolhido aquilo que mais me convém: o branco ou o amarelo, o que brilha e o que é baço, as curvas e as linhas rectas. Sou volátil para este, rígida para aquele, angulosa como um cristal de neve prateado, ou voluptuosa como uma chama púrpura. Projectei-me com toda a violência possível, como se fosse um chicote. A camisa dele, ali, naquele canto, começou por ser branca; depois vermelha; fomos envolvidos pelo fumo e pelas chamas; depois de uma confrontação furiosa – muito embora mal tenhamos levantado a voz, sentado no tapete em frente à lareira, à medida que murmurávamos os nossos segredos mais íntimos de forma a os transformar em conchas, evitando assim que fossem escutados, mesmo depois de eu ter ouvido o cozinheiro e de certa vez termos pensado ser o tiquetaque do relógio uma bola de futebol – transformamo-nos em cinzas, nada deixando que pudesse servir de relíquia, nenhum osso por queimar, nenhuma madeixa de cabelo susceptível de ser guardada. O meu cabelo começou a embranquecer; estou a definhar; mas continuo a sentar-me frente ao espelho em pleno dia, e reparo com exactidão no meu nariz, queixo, e lábios que se abrem de mais e revelam grande parte das gengivas. Mesmo assim, não tenho medo.

– Quando vinha da estação – disse Rhoda –, vi candeeiros e árvores que ainda não deixaram cair as folhas. Estas talvez me tivessem podido ocultar. Contudo, e ao contrário do que era costume, não me escondi atrás delas. Ao invés de começar a andar em círculos com vista a evitar o choque provocado pela sensação, de pronto caminhei ao vosso encontro. Mas claro que isto só foi possível porque ensinei o meu corpo a desempenhar um certo truque. Mesmo assim, este não resulta no que respeita ao nível inferior; tenho medo, odeio, amo, invejo-vos e desprezo-vos, mas nunca me sinto feliz por vos encontrar. Quando vinha da estação, recusando-me a aceitar a sombra das árvores e dos postes, apercebi-me através dos vossos casacos e chapéus de chuva, e isto mesmo à distância, o quanto vocês estão embebidos numa substância constituída pela união de uma série de momentos repetidos; do modo como se comprometem, tomam atitudes, têm filhos, autoridade, fama, amor, amigos. Pela parte que me toca, nada tenho, nem sequer um rosto.