Aqui, nesta sala de restaurante, vocês vêem as hastes dos veados que estão penduradas na parede e também os copos; os saleiros; as manchas amarelas que enchem a toalha. “Criado!” exclama o Bernard. “Pão!”, grita a Susan. E o certo é que o criado nos vem trazer o pão. Mas eu encaro os contornos do copo como se pertencessem a uma montanha, e vejo apenas alguns galhos das hastes, e até mesmo aquele jarro se me apresenta como uma fenda na escuridão. Não preciso dizer que tudo isto me fascina e horroriza. As vossas vozes lembram o som das árvores que se quebram na floresta. Sinto o mesmo em relação aos vossos rostos, com as suas saliências e covas. Como são belos quando vistos a uma certa distância e no escuro, imóveis, recortando-se contra a vedação de uma praça qualquer! Atrás de vocês existe um crescente de espuma branca, e os pescadores que trabalham na beira do mundo lançam as redes para depois as recolherem. O vento agita as folhas mais altas das árvores primordiais. (Contudo, estamos sentados em Hampton Court.) Os gritos dos papagaios quebram o silêncio da selva. (É neste ponto que os eléctricos arrancam.) A andorinha mergulha as asas nos lagos nocturnos. (Aqui fala-se.) É esta a circunferência que tento agarrar assim que nos sentamos. É por isso que tenho de me penitenciar em Hampton Court, e precisamente às sete e meia.
Mas, e dado que necessito destes pães e das garrafas de vinho, que os vossos rostos, mesmo com as covas e saliências que lhes são características, são belos, e não é permitido à mancha amarela existente na toalha que alastre os seus círculos de compreensão (pelo menos é isso que sonho durante a noite, quando o leito onde durmo flutua, acabando por cair sempre na terra) de forma a que estes possam abarcar todo o mundo, tenho de me sujeitar a todas as farsas do ser. Vejo-me obrigada a fazê-lo quando me atiram com os filhos, os poemas, as frieiras, ou seja lá aquilo que fazem e de que têm de aceitar as consequências. Contudo, ainda não me desfiz. Depois de todos estes chamamentos, destes ataques e buscas, deixar-me-ei cair no meio das chamas, passando primeiro por esta gaze muito suave. E vocês não me ajudarão. Mais cruéis que qualquer torturador, deixar-me-ão cair, desfazendo-me em mil pedaços durante a queda. Mesmo assim, há momentos em que as paredes da mente se tornam menos espessas; em que nada fica por absorver, de tal forma que seria capaz de imaginar que temos capacidade para soprar uma bola de sabão de tais dimensões que o Sol nela se poderia pôr e nascer, e que poderíamos roubar o azul do meio-dia e o negro da meia-noite, e escaparmo-nos daqui de uma vez por todas.
– O silêncio vai caindo gota a gota – disse Bernard. – Forma-se no ponto mais alto da mente e vai-se acumulando em poças. Só, só, para sempre só, escutar o silêncio cair e estender-se em círculos até aos limites extremos. Saciado e farto, sólido devido à felicidade característica da meia-idade, eu, a quem a solidão destrói, deixo cair o silêncio, gota a gota.
Porém, os pingos de silêncio cavam-me abismos no rosto, desgastam-me o nariz, tal como acontece com os bonecos de neve quando apanham chuva. À medida que o silêncio cai, vou-me dissolvendo, perco as feições, e mal me consigo distinguir dos outros. O facto também não interessa. Ao fim e ao cabo que é que interessa? Jantamos bem. O peixe, as costeletas de veado e o vinho, tudo isto contribuiu para tornar rombo o dente afiado do egotismo. A ansiedade repousa. O mais vaidoso de todos nós, talvez o Louis, já não se importa com o que as pessoas pensam. Cessaram as tonturas características do Neville. Os outros que prosperem – é isso que ele pensa. A Susan escuta a respiração regular dos filhos, agora adormecidos. “Durmam, durmam”, murmura. A Rhoda inclinou os barcos na direcção da praia. Não lhe interessa saber se se afundaram ou estão a salvo. Estamos prontos a aceitar de forma quase que imparcial toda e qualquer sugestão que o mundo nos possa oferecer. Reflicto agora sobre a possibilidade de a Terra ser apenas uma pedrinha arrancada à superfície do Sol, e de não existir vida em lugar algum nos abismos do espaço.
– Neste silêncio – disse Susan –, parece que nenhuma folha vai cair, nem nenhuma ave levantar voo.
– Tal como se o milagre tivesse acontecido – disse Jinny –, e a vida se condensasse aqui e agora.
– E – disse Rhoda –, já não mais houvesse para viver.
– Mas – disse Louis –, escutem como o mundo se move nos abismos do espaço infinito. Ouçam-no rugir; a faixa iluminada da história deixou de existir, e com ela os nossos reis e rainhas; deixamos de ser; a nossa civilização; o Nilo; a vida. Dissolveram-se as gotas que nos conferiam individualidade; extinguimo-nos; estamos perdidos no abismo do tempo, na escuridão.
– O silêncio cai; o silêncio cai – disse Bernard. – Mas agora escutem: tiquetaque; silvo após silvo; o mundo fez-nos de novo regressar a ele. Durante breves instantes, quando passamos para lá da vida, ouvi rugir os ventos da escuridão. Foi então que tiquetaque (o relógio); então, os silvos (os automóveis). Aportamos, estamos na praia; somos seis indivíduos sentados à mesa. É a imagem do meu nariz que mo lembra. Levanto-me. Luta! Luta!, grito, lembrando-me da forma do nariz que tenho, e acabo por bater com a colher na mesa.
– Temos de nos opor a este caos ilimitado – disse Neville –, a esta imbecilidade informe. Pelo simples facto de estar a fazer amor com uma qualquer criadita debaixo de uma árvore, aquele soldado é mais digno de admiração que todas as estrelas. Porém, há momentos em que uma simples estrela a brilhar no céu me faz pensar que o mundo é belo, e que nós, vermes, deformamos as árvores com a nossa luxúria.
– E contudo, Louis – disse Rhoda –, o silêncio dura pouco. Já começaram a alisar os guardanapos que estão junto aos pratos. “Quem lá vem?”, pergunta a Jinny, e o Neville suspira, pois sabe que não pode ser o Percival. A Jinny tirou o espelho da bolsa. Observando o rosto com o olhar de um artista, passa a borla de pó-de-arroz pelo nariz, e dá aos lábios o tom de vermelho que eles precisam. A Susan, a quem a visão destes preparativos provoca um sentimento onde o medo e o desprezo se misturam, aperta o botão superior do casaco, de novo o desapertando. Para que se estará ela a preparar? Sim, para alguma coisa, mas para alguma coisa diferente.
– Estão a falar uns com os outros – disse Louis. – Dizem: Está na hora. Continuo vigoroso. O meu rosto sobressairá contra a escuridão do espaço infinito. Não concluem as frases. Não param de repetir que está na hora. Os jardins fecharão. E, Rhoda, ao irmos com eles, ao nos deixarmos arrastar pela sua corrente, talvez nos deixemos ficar um pouco para trás.
– Quais conspiradores, temos segredos a partilhar – disse Rhoda.
– É verdade – disse Bernard –, sinto-o cada vez com mais segurança à medida que vamos descendo a avenida, que houve um rei que caiu do cavalo precisamente neste ponto, depois de o animal ter tropeçado num montículo de terra.
Contudo, não deixa de ser estranho situar nos abismos do espaço infinito uma figurinha com um bule dourado na cabeça. É com facilidade que se recupera a crença nas figuras, mas não naquilo que elas colocam na cabeça. O nosso passado inglês, uma réstia de luz. É então que as pessoas colocam um bule na cabeça e dizem: “Sou Rei”. Não pode ser. Enquanto caminho, tento recuperar o sentido do tempo, mas o fluxo de escuridão que me passa frente aos olhos impede-me de o fazer.