Выбрать главу

Este palácio parece ser tão leve como uma nuvem. Colocar reis em tronos e pôr-lhes coroas na cabeça – isso são apenas ilusões. E nós, caminhando os seis lado a lado, que podemos opor a esta inundação, nós, que só temos uma pequena chama a que chamamos cérebro e sentimentos? Afinal, que é que permanece. As nossas vidas também vão escorrendo pelas avenidas mal iluminadas, para lá do tempo, sem que sejam identificadas.

Certa vez, o Neville atirou-me um poema. Ao sentir uma súbita convicção de imortalidade, disse: “Também sei o que Shakespeare sabia”. Mas até isso desapareceu.

– De forma ridícula, injustificável, o tempo regressa à medida que avançamos – disse Neville. – A máquina funciona. O tempo fez com que o portão se tornasse velho. Quando comparados com aquele cão que, todo empertigado, satisfaz as suas necessidades, trezentos anos nada parecem ser. O rei Guilherme, usando uma peruca, monta a cavalo, e as damas da corte varrem o solo com as suas saias bordadas. Começo a convencer-me que o destino da Europa é de importância vital, e que, por muito ridículo que possa parecer, tudo depende da batalha de Blenheim. Sim, declaro eu no momento em que atravessamos este portão, estamos no momento presente. De súbito, transformei-me no rei Jorge.

– À medida que descemos a avenida – disse Louis –, eu apoiando-me suavemente na Jinny, o Bernard de braço dado com o Neville, e a Susan de mão dada comigo, sinto dificuldade em não chorar, em não imaginar que somos crianças e que rezamos para que Deus vele por nós durante o sono. É tão doce cantar em conjunto, de mãos dadas e com medo do escuro, enquanto a Miss Curry toca harmônica!

– Os portões de ferro recuaram – disse Jinny. – As mandíbulas do tempo pararam. Graças ao pó-de-arroz, ao rouge, e aos lenços finos, conseguimos derrotar os abismos do espaço.

– Prendo, seguro-me com força – disse Susan. – Não largo esta mão, não importa de quem ela seja, e sinto amor, sinto ódio; não interessa saber qual ao certo.

– Somos possuídos por um sentimento de calma, da dissipação – disse Rhoda – e todos desfrutamos deste alívio momentâneo (não é muito frequente deixarmos de sentir ansiedade), quando as paredes da mente se tornam transparentes. O palácio de Wren, semelhante ao quarteto que foi tocado por todas aquelas pessoas secas que se encontravam nos assentos, é um rectângulo. Coloca-se um quadrado em cima do rectângulo e diz-se: É aqui que moramos. A estrutura é agora visível. Pouco ficou de fora.

– A flor – disse Bernard –, o cravo vermelho que estava em cima da mesa do restaurante na noite em que jantamos com o Percival, transformou-se numa flor composta de seis lados, de seis vidas.

– Numa luz misteriosa – disse Louis –, reflectida contra esses teixos.

– Construída com muita dor, com muitas pinceladas – disse Jinny.

– Casamentos, mortes, viagens, amizades – disse Bernard –, campo e cidade; filhos e tudo o mais; uma substância composta por muitos ângulos, feita a partir desta escuridão; uma flor multifacetada. O melhor será pararmos por alguns instantes e contemplarmos o que fizemos. A nossa obra que brilhe, que incida nos teixos. Uma vida. Ali. Acabou. Desapareceu.

– Foram-se todos embora – disse Louis. – A Susan com o Bernard. O Neville com a Jinny. Tu e eu, Rhoda, paramos por instantes junto a esta urna de pedra. Que tipo de canto iremos escutar, agora que estes casais se embrenharam nos bosques e a Jinny, gesticulando com as mãos cobertas pela pele das luvas, tenta fazer crer que está a reparar nos nenúfares, e a Susan, que sempre amou o Bernard, lhe diz: A minha vida arruinada, desperdiçada. E o Neville, segurando a pequena mão da Jinny, a mão cujas unhas têm a cor das cerejas, grita, talvez que influenciado pelo lago e pelo luar: Amor, amor, ao que ela responde imitando a ave: Amor, amor. Que tipo de canto escutamos.

– E lá desaparecem eles em direcção ao lago – disse Rhoda. – Avançam por sobre a relva com passos furtivos, se bem que com a segurança de quem nos pedem um antigo privilégio que lhes é devido, o de não serem perturbados. A corrente da alma escoa-se naquela direcção; não podem fazer outra coisa senão partir, deixando-nos sós. A escuridão envolveu-lhes os corpos. Que canto estaremos a ouvir, o do mocho, o do rouxinol, ou o da carriça? O barco a vapor assobia; brilham os fios dos eléctricos; as árvores vergam-se e baloiçam com gravidade. Há um fulgor a pairar sobre Londres. Vê-se uma mulher idosa a caminhar devagar nesta direcção, e também um homem, um pescador que se atrasou, e que desce o terraço com a cana de pesca. Nada nos pode escapar, quer seja som ou movimento.

– Uma ave regressa ao ninho – disse Louis. – A noite fê-la abrir os olhos, e ela examina os arbustos mais uma vez antes de adormecer. Como a deveremos montar, a mensagem confusa e complexa que nos enviam, e não apenas eles, mas também os mortos, rapazes e raparigas, mulheres e homens adultos, que, sob o reinado deste ou daquele rei, por aqui passaram.

– Caiu um peso na noite – disse Rhoda –, o que a fez afundar. As árvores parecem maiores devido a uma sombra que não é a que lhes está atrás. Ouvimos os ruídos que nos chegam de uma cidade cercada quando os turcos estão esfomeados e de mau humor. Ouvimo-los gritar num tom agudo: Abram, abram.

Ouçam como os eléctricos chiam e os fios de electricidade brilham. Escutamos as faias e os vidoeiros a elevar os ramos, tal como se a noiva tivesse deixado cair a camisa de noite e chegasse à porta dizendo: Abre, abre.

– Tudo parece estar vivo – disse Louis. – Esta noite não consigo ouvir a morte em parte alguma. Poder-se-ia pensar que a estupidez estampada no rosto daquele homem e a idade daquela mulher teriam força suficiente para resistir ao feitiço e trazer a morte. Mas onde é que ela está esta noite? Toda a crueza, contratempos e fins, se estilhaçaram contra esta corrente azul, orlada a vermelho, a qual, depois de ter arrastado o maior número possível de peixes até à praia, acaba por se quebrar aos nossos pés.

– Se pudéssemos formar uma torre humana, se pudéssemos avistar as coisas de um ponto suficientemente alto – disse Rhoda –, se pudéssemos permanecer intocáveis e sem qualquer apoio, mas tu, perturbado por toda uma série de sons distantes onde se misturam elogios e gargalhadas, e eu, que me ressinto das noções de compromisso, de bem e de mal, confiamos apenas na violência e na solidão da morte, e é isso que nos divide.

– Estamos divididos para sempre – disse Louis. – Sacrificamos os abraços por entre os fetos e o amor, o amor, o amor junto ao rio. Fizemo-lo quando, semelhantes a conspiradores que se afastam para partilhar um segredo, nos juntamos ao lado da urna. Mas olha, repara, há uma onda a rasgar o horizonte. A rede vai-se levantando cada vez mais. Está quase à superfície. As águas são salpicadas por pequenos peixes, trêmulos e prateados. Vejo aproximarem-se algumas figuras. Serão homens ou mulheres? Trazem ainda as vestes bordadas características da corrente onde estiveram mergulhadas.

– Agora – disse Rhoda –, ao passarem por aquela árvore, recuperam o tamanho natural. Trata-se apenas de homens e de mulheres. O fascínio e o encanto desaparecem à medida que despem os brocados. A piedade regressa quando os vejo emergir ao luar, semelhantes às relíquias de um exército que, todas as noites (aqui ou na Grécia), sai para lutar, regressando sempre com os rostos desolados e cobertos de feridas. A luz acaba por incidir sobre eles. Têm faces. Transformam-se na Susan e no Bernard, na Jinny e no Neville, em gente que conhecemos. Como as coisas encolhem! Como tudo se encarquilha! Que humilhação! Sou percorrida pelos velhos arrepios, ódios e tremores, ao sentir que os anzóis que nos lançam me prendem a um único ponto. Contudo, basta-lhes falar para que as primeiras palavras por eles pronunciadas e os gestos que as acompanham me desviem do objectivo a que me propusera inicialmente.