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– Algo tremeluz e dança – disse Louis. – A ilusão regressa, à medida que vão descendo a avenida. Volto-me a interrogar.

Que será que penso de vós? Que pensarão vocês de mim? Quem sois vós? Quem sou eu? – tudo isto faz com que sobre nós volte a pairar um ar algo constrangido, e o pulso volta a bater mais depressa, os olhos iluminam-se, e toda a insanidade da existência pessoal, sem a qual a vida cairia redonda e morreria, tudo isto recomeça. Eles estão sobre nós. O sol poente paira por sobre esta urna; abrimos caminho até à corrente característica do mar, violenta e cruel. O Senhor ajuda-nos a representar o papel que nos compete quando saudamos a sua volta, a volta da Susan e do Bernard, a volta do Neville e da Jinny.

– Destruímos algo com a nossa presença – disse Bernard. – Talvez um mundo.

– E contudo, mal podemos respirar de cansados que estamos – disse Neville. – Encontramo-nos naquele estado mental exausto e passivo, quando apenas nos apetece voltar ao corpo da mãe, do qual fomos separados. Tudo o resto é desagradável, forçado e cansativo. A esta luz, o lenço amarelo da Jinny adquire uma coloração parda. A Susan tem os olhos mortiços. É quase impossível distinguirem-nos do rio. A ponta de um cigarro é a única coisa que nos confere algum ênfase. A tristeza mancha o nosso contentamento por vos termos abandonado, por termos rasgado o tecido; possuídos pelo desejo de espremer um sumo ainda mais negro e amargo, mas igualmente doce. No entanto, agora estamos estoirados.

– Depois do fogo – disse Jinny –, nada mais temos para guardar.

– Mesmo assim – disse Susan –, continuo de boca aberta, como uma qualquer jovem ave insatisfeita à qual algo tenha escapado.

– Antes de partirmos – disse Bernard –, talvez seja melhor ficarmos juntos por mais um momento. Vamos passear junto ao rio na mais completa solidão. Está quase na hora de deitar. As pessoas já foram para casa. É bastante reconfortante observar as luzes apagarem-se nos quartos dos pequenos comerciantes que vivem do outro lado do rio. Ali está uma, ali outra. Quais terão sido os lucros por eles hoje obtidos? Apenas o suficiente para pagar a renda, a electricidade, a comida e a roupa dos filhos. Mas apenas o suficiente. Como é grande a sensação de que a vida é tolerável que nos é dada pelas luzes dos quartos dos pequenos lojistas! Quando chega o sábado, o mais provável é terem apenas dinheiro para pagar quatro entradas de cinema. Talvez que antes de apagarem as luzes se dirijam até ao pequeno jardim que possuem para olhar o coelho gigante que se encontra dentro da capoeira de madeira. Trata-se do coelho que comerão ao jantar de sábado. Depois apagam as luzes. Depois adormecem. E, para milhares de pessoas, dormir não passa de algo quente e silencioso, de um prazer momentâneo composto por um qualquer sonho fantástico. Enviei a carta para o jornal de domingo, pensa o merceeiro. Suponhamos que ganho quinhentas libras no jogo de futebol. E, claro, mataremos o coelho. A vida é agradável. A vida é boa. Enviei a carta. Vamos matar o coelho. Só então adormece.

E este tipo de coisas continua. Ouço um som semelhante ao deslizar de vagões nos carris. Trata-se da ligação feliz que existe entre os acontecimentos que se sucedem na vida de cada um. Toque, toque, toque. Dever, dever, dever. Deve-se partir, deve-se dormir, deve-se levantar – trata-se daquela palavra sóbria e piedosa que pretendemos insultar, que apertamos com força contra o coração, e sem a qual não existiríamos. Como adoramos o som dos vagões que vão batendo uns contra os outros ao deslizar nos carris!

Não muito longe do rio, ouço pessoas cantar. Trata-se dos rapazes gabarolas que regressam em grandes grupos depois de terem passado o dia no convés de um vapor apinhado. Continuam a cantar da mesma forma de sempre quando atravessam o pátio nas noites de Inverno, ou quando as janelas se abrem durante o Verão, embebedando-se, partindo a mobília, vestidos com pequenas capas às riscas, olhando na mesma direcção sempre que o eléctrico contorna a esquina. E eu que tanto queria estar com eles!

Vamo-nos desintegrando com o coro, com o som da água a correr, e com o murmúrio suave da brisa. Vão ruindo pequenos pedaços de nós. Ah! Alguma coisa de muito importante caiu ali. Já não me consigo manter inteiro. Gostaria de dormir. Todavia, temos de partir; de apanhar o comboio; de voltar para a estação – temos, temos, temos. Somos apenas corpos que avançam lado a lado aos solavancos. Existo apenas na sola dos pés e nos músculos cansados das coxas. Parece que caminho há já várias horas. Mas por onde? Não me consigo lembrar. Sou como um tronco que desliza suavemente por sobre uma qualquer queda de água. Não sou juiz. Ninguém me pede para dar a minha opinião. A esta luz cinzenta, as casas e as árvores parecem todas a mesma coisa. Será aquilo um poste? Uma mulher a andar? Aqui é a estação, e se o comboio me cortasse em dois, acabaria por voltar a me transformar num ser uno, indivisível. Porém, não deixa de ser estranho o facto de continuar a agarrar com firmeza o bilhete de regresso de Waterloo, mesmo agora, mesmo quando estou a dormir.

O Sol acabara de se pôr. Era impossível distinguir o céu e o mar. Ao rebentar, as ondas espalhavam os seus leques brancos por sobre a praia, enviavam sombras brancas para os recantos das grutas, e acabavam por recuar, sussurrando por sobre o cascalho.

As árvores abanavam os ramos, enchendo o chão de folhas. Estas assentavam com a maior das composturas no local exacto onde acabariam por apodrecer. O barco partido que antes lançara raios vermelhos projectava agora sombras negras e cinzentas no jardim. Manchas negras escureciam os túneis entre os caules. O tordo calou-se e o verme voltou ao buraco estreito onde habitava. De vez em quando, uma palha esbranquiçada e vazia era soprada de um qualquer velho ninho e caía nas ervas escuras, por entre as maçãs podres. A luz deixara de incidir na parede da arrecadação, e a pele da cobra continuava a abanar, presa por um prego. Dentro de casa, todas as cores haviam alagado as margens que as continham. Até mesmo as pinceladas mais definidas estavam como que inchadas; armários e cadeiras fundiam as respectivas massas castanhas até estas constituírem uma enorme obscuridade. A distância que separava o tecto do chão estava coberta por vastas cortinas escuras. O espelho estava tão pálido como a entrada de uma gruta oculta por trepadeiras.

Esvaíra-se a solidez das montanhas. Luzes passageiras projectavam feixes triangulares por entre estradas invisíveis e afundadas, mas aquelas não encontravam eco entre as asas dobradas das montanhas, e não se escutava qualquer outro som para além do grito de uma qualquer ave procurando uma árvore solitária. Na margem do rochedo, sentia-se tanto o murmúrio do vento que passava por entre as florestas, como o das águas, arrefecidas em pleno oceano em milhares de copos cristalinos.

Tal como se o ar estivesse coberto de ondas sombrias, a escuridão alastrava, cobrindo casas, montanhas e árvores, da mesma forma que as vagas circulam em torno de um navio afundado. A escuridão descia as ruas, rodopiando em volta de algumas figuras isoladas, envolvendo-as; apagando os casais agarrados à sombra dos ulmeiros exuberantes na sua folhagem estival. As ondas de negrume rolavam pelos caminhos cobertos de erva e pela pele enrugada da turfa, envolvendo o espinheiro solitário e as conchas de caracol vazias. Mais acima, a escuridão soprava ao longo das vertentes nuas das terras altas, chegando mesmo a alcançar os píncaros da montanha onde a rocha dura está sempre coberta de neve, mesmo quando os vales se enchem de riachos, de folhas de videira, e também de raparigas que, sentadas em terraços e cobrindo os rostos com leques, elevam os olhos para a neve. A escuridão tudo cobriu.

– Está na hora de resumir – disse Bernard. – Chegou a hora de te explicar o sentido da minha vida. Dado não nos conhecermos (se bem que me pareça já te ter encontrado antes, a bordo de um navio que seguia para África), podemos falar com franqueza. Sinto-me possuído pela ilusão de que existe algo que adere durante alguns instantes, é redondo, tem peso, profundidade, está completo. Pelo menos por agora, é assim que sinto a minha vida. Se fosse possível, seria este o presente que te gostaria de oferecer. Arrancá-la-ia como quem arranca um cacho de uvas. Diria: “Toma. É a minha vida”.