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A Jinny foi a primeira a deslizar até junto ao portão só para comer açúcar. Revelando grande esperteza, roubava os torrões aos que os tinham, mas as suas orelhas estavam sempre puxadas para trás, o que indicava encontrar-se sempre pronta a morder. A Rhoda era arisca – nunca ninguém a conseguiu apanhar. Tinha tanto de medrosa como de desastrada. Foi a Susan quem primeiro se tornou mulher, um ser puramente feminino. Foi ela quem derramou no meu rosto aquelas lágrimas escaldantes que tanto têm de belo como de terrível; de tudo ou nada. Dado necessitarem estes de segurança, nasceu para ser adorada pelos poetas, pois trata-se de seres que gostam de quem se sente a coser e diga: “Amo, odeio”; de quem não seja próspero nem se sinta confortável, mas que possua uma qualquer qualidade em sintonia com a elevada (se bem que pouco simpática) beleza característica do estilo puro, a qual é particularmente admirada por aqueles que criam poesia. O pai dela percorria os quartos e descia os corredores com uma camisa de dormir bastante larga e um par de chinelos velhos. Nas noites calmas, podia-se escutar claramente o ruído das quedas d'água que ficavam a mais de uma milha de distância. O velho cão mal tinha forças para se pôr de pé. Para mais, ainda havia uma criada louca que não parava de rir e de fazer girar a roda da máquina de costura.

Constatei o facto até mesmo em plena angústia, quando, torcendo o lenço entre as mãos, a Susan gritou: “Amo, odeio”.

Pensei: “Há uma criatura inútil a rir no sótão”, e este pequeno exemplo serve para mostrar o modo incompleto como mergulhamos nas nossas próprias experiências. No limite de toda a agonia senta-se um qualquer sujeito que observa e aponta; que murmura coisas, exactamente do mesmo modo como me murmurou uma frase naquela manhã de Verão, na casa onde o milho chega até à janela: “E foi assim que me dirigiu para aquilo que transcende as nossas capacidades; para o que é simbólico e assim talvez que permanente, isto se houver alguma permanência no facto de comermos, dormirmos e respirarmos; como se houvesse algo de permanente nestas vidas tão animais, tão espirituais e tumultuosas”.

O salgueiro crescia junto ao rio. Sentava-me na relva macia junto com o Larpent, o Neville, o Baker, o Romsey, o Hughes, o Percival e a Jinny. Através das suas pequenas plumas manchadas de pequenos fios que ora eram verdes na Primavera ora alaranjados no Outono, via passar os barcos; via edifícios e mulheres decrépitas a tentar andar depressa. Foram muitos os fósforos que enterrei no solo, todos eles destinados a marcar este ou aquele estádio do processo de compreensão (poderia ter sido filosófico; científico; até mesmo pessoal). Enquanto isso, os limites da minha inteligência captavam todas as sensações, até mesmo as mais distantes; o soar dos sinos; murmúrios gerais; figuras que se esbatiam; uma rapariga a andar de bicicleta que, e à medida que avançava, parecia levantar a ponta do véu que ocultava todo o caos da vida existente para lá dos contornos dos meus amigos e do salgueiro.

Só a árvore resistia ao eterno fluxo de mudança. Pois o certo é que eu mandava; era Hamlet, era Shelley, era o herói (cujo nome já me esqueci) de um romance de Dostoievsky; e, por muito incrível que pareça, cheguei mesmo a ser Napoleão. Claro que esta fase só durou um período lectivo. O certo é que, e na maior parte do tempo, julgava ser Byron. Durante semanas a fio nada mais fiz senão andar pelos quartos a atirar luvas e casacos para as costas das cadeiras. Não parava de caminhar para a estante para beber mais um gole de água da nascente. Assim, deixei cair todas as frases que possuía em alguém pouco apropriado – uma rapariga que já casou e morreu –; em todos os livros, em todos os assentos colocados junto às janelas, se viam excertos das cartas que nunca cheguei a acabar e que tinham como destinatário a mulher que me transformava em Byron. O certo é que é difícil acabar a escrita no estilo de outra pessoa. Chegava todo transpirado à casa dela; trocávamos juras. Contudo, e dado não me encontrar suficientemente maduro para tamanha intensidade, acabei por me casar com outra pessoa. Mais uma vez, aqui devia haver música. Nada que se comparasse ao canto de caça do Percival; mas sim qualquer coisa de doloroso, gutural, amargo, algo parecido com o canto da cotovia e que conseguisse substituir estes escritos idiotas – demasiado evidentes! demasiado razoáveis! – através dos quais tento descrever o momento esvoaçante característico do primeiro amor. O dia está coberto por uma película vermelha. Olhem bem para o mesmo quarto antes e depois de ela ter entrado. Olhem para os inocentes que, cá fora, vão seguindo o seu caminho. Nada vêem nem escutam; contudo, prosseguem. Ao nos movermos nesta atmosfera brilhante e pegajosa, sentimo-nos conscientes de todos os movimentos – algo adere, algo se cola à nossa mão, impedindo-nos de deixar cair o jornal. Existe ainda um ser esventado – colocado no exterior, posto a rodopiar, contorcendo-se em torno de um galho. Segue-se então o trovão da mais completa indiferença; a luz do relâmpago. Assiste-se depois ao regresso de uma certa dose de irresponsabilidade; certos campos dão a sensação de que ficarão verdes para sempre – por exemplo, aquele canteiro em Hampstead –; e todas as faces se iluminam, todos conspiram num burburinho de alegre ternura; e depois aquele sentido místico de realização, ao que se segue o reverso da medalha – aquelas feridas provocadas por aguilhões negros e que se sentem sempre que ela não vem. É então que nos ares se elevam toda a espécie de suspeitas; horror, horror, horror – mas qual a necessidade de elaborar dolorosamente estas frases consecutivas quando aquilo que é realmente necessário nada tem de contínuo, assemelhando-se mais a um latido, a um gemido? E tudo para, anos mais tarde, ver uma senhora de meia-idade a despir o casaco no restaurante., Mas o melhor será regressarmos. Vamos voltar a fingir que a vida é uma substância sólida, com a forma de um globo, e que a podemos fazer girar por entre os dedos. Vamos fingir ser capazes de elaborar uma história simples e lógica, de forma a que, uma vez encerrado um assunto – por exemplo, o amor – possamos avançar de forma ordenada para o ponto seguinte. Dizia eu que havia um salgueiro. Os seus ramos caídos e a sua casca grossa e rugosa tinham o mesmo efeito daquilo que permanece fora das nossas ilusões e que não as pode parar, chegando mesmo a sofrer as influências destas por alguns instantes, mas que permanece estável, no mesmo sítio, com a gravidade que falta às nossas vidas. Daí o comentário que produz; o padrão que apóia, e a razão pela qual, à medida que fluímos e mudamos, nos parece medir e avaliar. Por exemplo, o Neville sentou-se ao meu lado, na relva. Mas, ao seguir-lhe o olhar através dos ramos até este poisar numa barca onde se encontrava um jovem a comer uma banana, perguntou-me se as coisas podem ser assim tão claras. A cena recortava-se com tanta intensidade e estava tão impregnada pela qualidade da sua visão, que durante alguns instantes também eu a consegui ver através dos ramos do salgueiro: a barca, as bananas, o jovem. Só então se desvaneceu. A Rhoda aparecia sempre com ar de quem anda a vaguear. Considerava úteis todos os encontros que tivesse, desde os eruditos de capa a esvoaçar, aos burros que andavam pelos campos. Que medo se pressentia, escondia e acabava por se transformar em chamas nas profundezas daqueles olhos cinzentos, espantados, sonhadores? Apesar de cruéis e vingativos, não somos tão maus a esse ponto. Por certo que temos uma certa dose de bondade, ou seria impossível falar de forma aberta como o faço com alguém que mal conheço. Na sua mente, o salgueiro crescia no limiar de um deserto onde pássaro algum cantava. Quando as olhava, as folhas encarquilhavam, agonizando sempre que por elas passava. Os eléctricos e os autocarros rugiam ainda com mais força, passando por cima de pedras e seguindo em frente a grande velocidade. Talvez que no seu deserto existisse uma coluna iluminada pelo sol, junto a um lago onde os animais selvagens se aproximam para beber. Seguia-se então a Jinny. Era ela quem incendiava a árvore. Era como uma papoila, febril, dominada pelo desejo de beber a terra seca. Esguia, angulosa, sem nada ter de impulsivo, aproximava-se sempre preparada. São tão poucas as chamas que percorrem a terra seca. Ela fazia dançar os salgueiros, mas não com a imaginação, pois só via o que ali estava. Isto era uma árvore; aquilo um rio; era de tarde; estávamos ali; eu com um fato de sarja; ela vestida de verde. Não havia passado nem futuro; apenas o momento condensado num anel luminoso; os nossos corpos; e o êxtase e o clímax inevitáveis., Sempre que se deitava na erva, o Louis estendia um impermeável quadrado, tornando assim a sua presença notada. Tratava-se de algo formidável. Eu possuía a inteligência suficiente para saudar a sua integridade; a pesquisa que levava a cabo com os dedos ossudos que, e devido às frieiras, era obrigado a enrolar em farrapos, em busca de um qualquer diamante formado pela verdade indissolúvel. Enterrei caixas de fósforos a arder nos buraquinhos que se encontravam junto à relva que pisava. O seu sorriso e língua afiada reprovavam a minha indolência. A sua imaginação sórdida fascinava-me. Os seus heróis eram chapéus de coco, e dizia querer trocar pianos por notas de dez libras. Os eléctricos gemiam e as fábricas exalavam toda a espécie de fumos ácidos na paisagem que construía. Vagueava por ruas e cidades secundárias onde, no dia de Natal, as mulheres vagueiam, bêbedas e nuas. As suas palavras eram como que disparadas do alto de uma torre; atingiam a água e faziam-na erguer-se. Descobriu uma palavra, apenas uma, para descrever a Lua. Foi então que se levantou e partiu; todos se levantaram e partiram. Porém, parei, fitei as árvores, e, tal como acontecia no Outono quando olhava para os seus ramos vermelhos e amarelos, formou-se um qualquer sedimento; eu mesmo me formei; caiu uma gota; eu mesmo caí – ou seja, acabara de emergir de uma experiência recém-completada.