O certo é que às segundas se sucedem as terças. Contudo, restava ainda uma dúvida, uma nota interrogativa. Ao abrir a porta, surpreendi-me por ver os outros ocupados; ao pegar na chávena de chá, hesitei antes de dizer se preferia com leite ou açúcar. E a luz que caía das estrelas (exactamente como agora o faz) e poisava na minha mão depois de ter viajado durante milhões e milhões de anos, nada mais podia fazer do que me provocar um breve choque – o certo é que a minha imaginação é demasiado fraca. Contudo, restava ainda uma dúvida. Uma sombra na minha mente lembrando o bicho do caruncho que se introduz na madeira. Por exemplo, quando nesse mesmo ano fui visitar a Susan ao Lincolnshire e ela atravessou o jardim para me vir receber, movendo-se com os movimentos de uma vela semi-enfunada, com os movimentos baloiçando-nos no jardim. As carroças subiam o caminho carregadas de feno; as gralhas e as pombas arrulhavam da forma que lhes é peculiar; a fruta fora coberta e envolvida em redes; o jardineiro cavava. As abelhas zumbiam atrás dos carreiros vermelhos das flores; as abelhas mergulhavam nos escudos amarelos dos girassóis. A relva estava coberta de pequenos galhos. Tratava-se de qualquer coisa de rítmico, semiconsciente, envolto em brumas. Todavia, e pela parte que me tocava, era horrível, lembrava-me uma rede que cai sobre nós e nos tolhe os movimentos. Ela, que recusara o Percival, dera-se a isto, a este disfarce. Sentado num banco à espera do comboio, pensei no quanto nos havíamos rendido, na forma como nos tínhamos submetido à estupidez da natureza. À minha frente viam-se bosques cobertos de folhas verdes. E, devido a um qualquer odor ou som, a velha imagem regressava – os jardineiros a varrer e a dama sentada a escrever. Vi as figuras posicionadas junto às árvores, lá em Elvedon. Os jardineiros varriam, a senhora sentada à mesa não parava de escrever. No entanto, agora posso juntar o contributo da maturidade às intuições infantis – saturação e ruína; a sensação de que há sempre algo que não podemos ter; a morte; o conhecimento das nossas limitações; o saber o quanto a vida é mais dura do que aquilo que havíamos pensado. Quando era criança, bastava-me sentir a presença de um inimigo para me sentir espicaçado. Levantava-me e gritava: “Vamos partir à exploração.” E assim punha ponto final ao horror característico destas situações. E que situação havia ali para terminar? Saturação e ruína. E para explorar? Folhas e árvores que nada tinham a esconder. Se uma ave levantava voo, não celebrava o facto fazendo um poema – repetia o que já antes vira. Assim, se tivesse um ponteiro com que indicar as flutuações da curva da vida, indicava esta como sendo a mais baixa; é aqui que ela se enrola sem qualquer sentido na lama onde maré alguma chega – aqui, no local onde me sento com as costas apoiadas à vedação, os olhos cobertos pela aba do chapéu, enquanto o rebanho lá vai avançando com aquele passo duro e automático, característico das suas patas duras e finas. Mas, se afiarmos a lâmina romba de uma faca a uma pedra de amolar, algo se eleva: uma ponta de fogo. Assim, a falta de razão e de destino, o quotidiano, tudo isto misturado produziu uma chama composta por dois factores: ódio e desprezo. Acabei por pegar na minha mente, no meu ser, naquele objecto quase inanimado, e atirei-o contra todas aquelas pontas soltas, paus e palhas, despojos detestáveis de um naufrágio flutuando numa superfície oleosa. Levantei-me de um salto. Gritei: “Luta! Luta!”. O único objectivo que nos mantém vivos é o esforço e a luta, o estado de guerra permanente, o destroçar e voltar a unir – a batalha quotidiana, a derrota ou a vitória. As árvores, antes espalhadas, foram postas em ordem; o verde espesso das folhas transformou-se numa luz bailarina. Prendi tudo isto com uma frase súbita. Arranquei tudo isto ao terror do que é informe apenas com o uso das palavras. O comboio chegou. Alongando-se na plataforma, acabou por parar. Entrei nele. E estava de novo em Londres ao fim da tarde. Como me coube bem aquela atmosfera de senso comum e tabaco; de velhotas sentadas nos compartimentos de terceira classe agarradas aos cestos; de fumadores de cachimbo de “boa noite e até amanhã” pronunciadas por amigos que se despediam nas estações intermédias, e depois as luzes de Londres – nada que se comparasse ao êxtase da juventude, nada que se comparasse aos estandartes violeta de então, mas mesmo assim as luzes de Londres; luzes eléctricas e duras elevando-se nos escritórios mais altos da cidade; candeeiros de iluminação pública espalhados pelos pavimentos secos; chamas rugindo por sobre os mercados. Sinto sempre prazer em ver tudo isto depois de ter despachado um inimigo, nem que seja só por um momento. Por exemplo, gosto de ver o espectáculo da vida quando vou ao teatro. Aqui, o animal pardo, indescritível, que antes vagueava pelos campos, ergue-se nas patas traseiras, e, com uma grande dose de esforço e ingenuidade, ergue-se disposto a lutar contra os bosques e os campos verdes, e também contra os carneiros que, ruminando, avançam a um ritmo regular. E, como não podia deixar de ser, grandes janelas cinzentas estavam iluminadas; rolos de passadeira cortavam o pavimento; era ali que se limpavam e enfeitavam quartos, lareiras, alimentos, vinhos e conversas. Homens de mãos enrugadas e mulheres de brincos de pérolas não paravam de entrar e sair. Vi os rostos dos homens repletos de rugas e esgares provocados pelo trabalho e pelo mundo; e a beleza, que de tão adorada sempre por florescer, mesmo na velhice; e a juventude, tão apta para o prazer que este, pelo simples facto de nele se pensar, se vê obrigado a existir. Parecia que as colinas se precipitavam na sua direcção; e que o mar o cortava em pequenas ondas; e que os bosques fervilhavam de aves coloridas apenas para a juventude, para a juventude expectante. Era lá que se podia encontrar a Jinny e o Hal, o Tom e a Betty; era lá que contávamos as nossas piadas e partilhamos segredos; e nunca nos separávamos sem antes ter combinado um outro encontro no lugar mais apropriado à ocasião e à altura do ano. A vida é agradável; a vida é boa. A terça sucede-se à segunda, e depois daquela vem a quarta. Sim, mas as coisas começam a ser diferentes ao fim de um certo tempo. O facto pode ser-nos sugerido pelo aspecto de uma sala numa determinada noite, pelo modo como as cadeiras se dispõem. Parece ser bastante confortável afundarmo-nos no sofá colocado a uma esquina, e olhar, escutar. É então que duas figuras de costas para a janela se recortam contra os ramos de um salgueiro. Chocados, sentimos que se trata de pessoas cujos rostos não possuem qualquer beleza. Na pausa que se segue ao espalhar das ondas, a rapariga com quem era suposto estarmos a falar diz para si mesma: “Ele é velho”. No entanto não podia estar mais enganada. Não se trata da idade; foi apenas uma gota que caiu; mais uma. O tempo alterou as coisas outra vez. Lá vamos saindo do arco coberto de folhas, penetrando num mundo cada vez mais vasto. A verdadeira ordem das coisas – e é esta a nossa ilusão eterna – é agora apenas aparente. Assim, num instante, numa sala de estar, a nossa vida ajusta-se à marcha pomposa de um dia percorrendo o céu. Foi por isso que, ao invés de pegar nos meus sapatos de pele e de descobrir uma gravata tolerável, fui procurar o Neville. Procurei o mais antigo dos meus amigos, aquele que me conhecia desde os tempos em que eu era Byron, um dos discípulos de Meredith, e também o herói de um livro de Dostoievsky, cujo nome já me esqueci. Fui encontrá-lo só, a ler. A mesa perfeitamente arrumada; a cortina corrida de forma metódica; uma faca de cortar papel separando as páginas de um livro em francês – só então me apercebi de que ninguém altera nem as roupas nem as atitudes pelas quais os conhecemos. Lá estava ele sentado na mesma cadeira, vestindo a mesma roupa, igualzinho ao que fora no dia em que o conheci. Reinava ali a liberdade, a intimidade; o lume da lareira quase fazia explodir as maçãs das cortinas. Ficamos aIi muito tempo sentados a conversar. Acabamos por descer a avenida, a avenida que se oculta por baixo das árvores, por baixo das árvores de folhas pesadas e sussurrantes, as árvores que estão repletas de frutos. Trata-se da avenida que tantas vezes percorremos juntos, de forma que já não existe erva em torno de algumas árvores, em torno de algumas peças e poemas (os que nos eram mais queridos) – já que não existe erva porque a gastamos com os nossos passos. Leio sempre que tenho de esperar; se acordo durante a noite, procuro um livro na prateleira. A inchar, sempre a aumentar de volume, tenho a cabeça cheia de ideias nunca antes registradas. Por vezes, recito uma passagem. Talvez se trate de Shakespeare, talvez de uma velha mulher chamada Peck. A fumar um cigarro enquanto estou deitado na cama, digo de mim para mim: “Isto é Shakespeare. Aquilo é Peck”. Pronuncio estas palavras com a certeza característica do reconhecimento, junto com o choque sempre agradável do conhecimento, muito embora nada disto possa ser totalmente partilhado. E lá vamos comparando as nossas versões de Shakespeare e Peck, permitindo que as opiniões que perfilhamos nos ajudem a esclarecer alguns pontos obscuros das versões alheias; acabando por mergulhar num daqueles silêncios que só muito raramente são quebrados por algumas palavras, como se uma barbatana se elevasse para quebrar o silêncio; depois do que a barbatana (o pensamento) regressa às profundezas, provocando em seu redor uma onda de satisfação, de contentamento. Sim, mas de súbito escutamos o tiquetaque de um relógio. Nós, que antes tínhamos estado imersos neste mundo, apercebemo-nos da existência de outro. É doloroso. Foi o Neville quem alterou o nosso tempo. Ele, que pensara com o tempo ilimitado do espírito, o qual se estende como um relâmpago desde Shakespeare até nós, atiçou o lume e começou a viver de acordo com aquele relógio que marca a aproximação de uma determinada pessoa. Contraiu-se o balançar vasto e digno da sua mente. Pôs-se em guarda. Sentia-o escutar o ruído das ruas. Reparei na forma como tocava na almofada. De entre a vastidão de todos os seres humanos existentes e de todo o passado, escolhera uma única pessoa. Escutou-se um ruído na entrada. Aquilo que ele estava a dizer ficou a pairar no ar como uma chama pouco à vontade. Fiquei a vê-lo avançar passo a passo, esperar por um certo sinal de identificação e olhar para o puxador da porta com a rapidez de uma cobra. (Compreendi então o que fazia com que as suas sensações fossem tão agudas – fora sempre treinado pela mesma pessoa.) Uma paixão tão concentrada só podia expulsar todos os que lhe eram estranhos, mais ou menos como os fluidos cintilantes fazem com todo e qualquer tipo de massa que não os integre. Apercebi-me do quanto a minha natureza, repleta de sedimentos e dúvidas, repleta de frases e agendas recheadas de apontamentos, era vaga e enevoada. As dobras do cortinado imobilizaram-se; o pisa-papéis que estava em cima de uma mesa tornou-se mais pesado; a trama das cortinas faiscou; tudo se tornou definido, externo, uma cena à qual eu não pertencia. Sendo assim, levantei-me e deixei-o. Meu Deus, de que modo as mandíbulas e aquela dor antiga se apossaram de mim assim que abandonei a sala! o desejo de ver uma pessoa que não estava ali. Quem? A princípio não o soube, depois lembrei-me do Percival. Há meses que não pensava nele. Era tão bom que pudesse estar ali com ele, a descer a rua de braço dado e a rir às gargalhadas, troçando do Neville.