O objectivo desta viagem não era ouvir ecos, ver fantasmas, chamar opositores, mas apenas caminhar sem ter qualquer sombra a me encobrir, não deixando marcas na terra morta. Se ao menos ali houvesse um carneiro a ruminar, a arrastar uma pata atrás da outra, um pássaro ou um homem enterrando uma pá no solo, se ao menos ali houvesse um espinheiro para me prender, ou uma fossa repleta de folhas úmidas onde pudesse cair – mas não, o carreiro melancólico não possuía qualquer desnível, seguindo sempre através da mesma paisagem invernosa, pálida, e sem qualquer interesse. Assim sendo, como é que a luz regressa ao mundo depois de um eclipse solar? Por milagre. Aos poucos. Em faixas muito estreitas. O outro fica suspenso como se fosse uma redoma de vidro. É um círculo que qualquer pequeno toque pode quebrar. Surge ali uma pequena cintilação, de pronto abafada por um qualquer tom pálido. Segue-se um vapor, como se a terra estivesse a respirar pela primeira vez. Então, no meio de toda aquela melancolia, alguém caminha envolto numa luz verde. Adeus fantasma branco! Os bosques são percorridos por frêmitos azuis e verdes, e, aos poucos, os campos ficam inundados de vermelhos, dourados e castanhos. De súbito, há uma luz azul que se eleva das margens do rio. A terra absorve a cor como se de uma esponja a beber água devagar se tratasse. Ganha peso; arredonda-se; fica como que pendurada; assenta e baloiça suavemente a nossos pés. E assim a paisagem acabou por me ser devolvida; vi os campos serem submersos por ondas de cor, mas desta feita com uma diferença: via mas não era visto. Caminhava a descoberto; nada me denunciava. Deixara cair a velha capa, as velhas réplicas, a mão oca que produzia sons. Esguio como um fantasma, sem deixar marcas no solo por onde caminhava, apenas me apercebendo das coisas, percorria sozinho um mundo nunca antes percorrido; roçando flores desconhecidas; incapaz de articular qualquer outra palavra para além dos monossílabos próprios das crianças; sem o abrigo das frases – eu, que tantas construí sem qualquer companhia, eu, sempre rodeado de colegas; solitário, eu, que sempre tive alguém com quem partilhar a grade vazia ou o armário com o seu puxador dourado. Mas como descrever um mundo que é visto sem um “eu”? Não existem palavras. Azul, vermelho – até mesmo eles distraem, até mesmo eles impedem a passagem da luz.
Como voltar a descrever ou a dizer qualquer coisa servindo-me de palavras artificiais? – excepto aquilo que se esbate, aquilo que sofre uma transformação gradual, acabando por se transformar, mesmo no decorrer deste curto passeio. A cegueira regressa à medida que as folhas se vão repetindo. A ternura regressa à medida que olhamos, e com ela todo um comboio de frases-fantasmas. Respira-se cada vez com mais facilidade; lá em baixo, no vale, o comboio atravessa os campos envoltos em fumo. Todavia, houve uma altura em que me sentei na relva num qualquer ponto acima do nível do mar e do som dos bosques, e vi a casa, o jardim, as ondas a se desfazerem. A velha ama que virava as páginas do livro de gravuras parou e disse: “Olha. Isto é verdade”. E assim pensava eu esta noite, ao descer Shaftesbury Avenue. Pensava naquela página do livro de gravuras. Foi então que te encontrei no sítio onde se vai pendurar o casaco e disse para comigo: “Não interessa quem se conhece. Esta história de ser já terminou. Não sei de quem se trata nem me interessa saber; jantaremos juntos”. Foi então que pendurei o casaco, te dei uma pancadinha no ombro e disse: “Anda, vem sentar-te junto a mim”. A refeição já terminou; estamos rodeados de cascas e côdeas.
Tentei quebrar este ramo e oferecer-to, mas não faço a mínima ideia se nele existe alguma verdade ou conteúdo. Para falar com franqueza, nem sei muito bem onde nos encontramos. Que cidade contemplará aquele pedaço de céu? Será Paris, Londres, ou antes uma cidade do Sul, repleta de casas de um rosa desmaiado colocadas à sombra dos ciprestes e de altas montanhas sobrevoadas por águias? De momento, não tenho a certeza. Começo agora a esquecer; começo a duvidar da rigidez das mesas, da realidade do aqui e agora, e a bater com os nós dos dedos nos contornos dos objectos aparentemente sólidos, dizendo: “És mesmo duro?”. Vi tantas coisas, construí tantas frases diferentes. Perdi-me no processo de comer, beber, e esfregar os olhos contra as superfícies finas e duras que cercam a alma, as quais, e durante a juventude, nos impedem de sair – daí a falta de remorsos e a violência característica dos jovens. Chegou agora a hora de perguntar: “Quem sou eu?”. Outra coisa não fiz até agora senão falar a respeito do Bernard, do Neville, da Jinny, da Susan, da Rhoda e do Louis. Serei eu todos eles? Serei uma criatura individual e distinta? Não sei. Houve um tempo em que nos sentávamos juntos. Mas agora o Percival e a Rhoda estão mortos; estamos divididos; não estamos aqui. Mesmo assim, sou incapaz de encontrar qualquer obstáculo a nos separar. Não existem divisões entre eu e eles. À medida que falava, sentia que “eu sou vocês”. Conseguira ultrapassar esta divisão que tanto fazemos, esta identidade que adoramos com tanto fervor. Sim, quando a velha Mrs. Constable levantou a esponja e, derramando água sobre mim, me cobriu a carne, o facto tornou-me ultra-sensível. Sinto na testa o golpe que provocou a morte do Percival. Aqui, na nuca, está a marca do beijo que a Jinny deu ao Louis. Tenho os olhos cheios com as lágrimas da Susan. Lá ao longe, estremecendo como de uma teia dourada se tratasse, vejo a coluna que a Rhoda via, e sinto a deslocação de ar provocada por ela quando se atirou. É assim que para moldar a história da minha vida e te a apresentar como algo completo, tenho de me lembrar de coisas há muito ocorridas, afundadas nesta ou naquela vila, nela se fixando; de sonhos, dos objectos que me rodeavam, e dos seres que em mim habitam, esses velhos fantasmas semi-articulados que não param de me assombrar de noite e de dia; que se agitam durante o sono, que emitem gritos confusos, que estendem os dedos fantasmagóricos e me agarram sempre que tento escapar – sombras de potenciais seres humanos; seres que não chegaram a nascer. Claro que não me posso esquecer do velho bruto, do selvagem, do homem coberto de pêlo, que se entretém a brincar com entranhas; que devora e arrota; cujo discurso é gutural, visceral – bom, ele também existe e vive em mim. Esta noite alimentou-se de codornizes, salada, e timo de vitela. De momento, tem entre as garras um copo de brandy velho. À medida que bebo, vai ronronando de satisfação. Sim, é verdade que lava as mãos antes de jantar, mas mesmo assim estas continuam peludas. Abotoa calças e coletes, mas estes contêm os mesmos órgãos. Faz birras se não lhe dou de jantar.