Mas, de repente, teve medo. Medo de não saber que oração, não saber como continuar. E quando teve medo, a segunda mente voltou, e voltou o ridículo, a vergonha, a preocupação com Paulo. Afinal de contas, ele era o bruxo – sabia mais que ela, devia estar achando tudo aquilo falso.
Respirou fundo. Concentrou-se no presente, na terra onde nada crescia, no sol que já estava se escondendo. Aos poucos, a onda de segurança foi voltando – como um milagre.
– Tem uma oração – repetiu.
E irá ecoar
claramente
no céu
quando eu vier
fazendo barulho
Ficou algum tempo em silêncio, sentindo que dera o máximo de si, que a canalização acabara. Depois virou-se para ele.
– Fui longe demais hoje. Nunca tinha acontecido assim.
Paulo passou a mão em sua cabeça, e deu-lhe um beijo. Ela não sabia se ele estava fazendo aquilo por pena, ou por orgulho.
– Vamos embora – disse. – Respeitemos o desejo da terra.
“Talvez esteja dizendo isto para me dar um estímulo, para que continue a tentar a canalização”, pensou. Entretanto, tinha certeza – alguma coisa havia acontecido. Não inventara tudo aquilo.
– A oração – perguntou ela, ainda com medo da resposta.
– É um velho canto indígena. Dos feiticeiros Ojibuei.
Ficava sempre orgulhosa com a cultura do marido, embora ele dissesse que não servia para nada.
– Como podem acontecer estas coisas?
Paulo lembrou-se de J. falando sobre os segredos de alquimia no seu livro: “As nuvens são rios que já conhecem o mar.” Mas teve preguiça de explicar. Andava tenso, irritado, sem saber exatamente por que continuava no deserto; afinal de contas, já sabia como conversar com o anjo da guarda.
– Você viu o filme Psicose? – perguntou para Chris, quando chegaram ao carro. Ela confirmou com a cabeça.
– No filme, a atriz principal morre no banheiro, logo nos primeiros dez minutos. No deserto, eu descobri como se conversa com os anjos no terceiro dia. E no entanto, prometi a mim mesmo que ficaria quarenta dias aqui e agora não posso mudar de idéia.
– Mas tem as Valkírias.
– As Valkírias! Posso viver sem elas, entende?
(“Ele está com medo de não encontrá-las”, pensou Chris.)
– Já sei conversar com os anjos, isto é que é importante! – o tom de voz de Paulo era agressivo.
– Estava pensando nisso – respondeu Chris. – Você já sabe, e, entretanto, não quer tentar.
“Este é o meu problema”, Paulo disse para si mesmo, enquanto ligava o carro. “Preciso de emoções fortes. Preciso de desafios.”
Olhou para Chris. Ela lia, distraída, o Manual de Sobrevivência no Deserto que tinham comprado numa das cidadezinhas por onde passaram.
Deu a partida no carro. Começaram a andar por mais uma daquelas imensas retas que pareciam não acabar nunca.
“Não é só um problema da busca espiritual”, continuou pensando, enquanto alternava seu olhar entre Chris e a estrada. Estava farto do casamento, mesmo sabendo que amava a mulher. Precisava de emoções fortes no amor, no trabalho, em quase tudo que fazia em sua vida. Assim, contrariava uma das mais importantes leis da Natureza: todo movimento precisa de repouso. Sabia que, se continuasse dessa forma, nada em sua vida duraria muito. Começava a entender o que J. queria dizer com “a gente destrói aquilo que mais ama”.
Dois dias depois chegaram a Gringo Pass, um lugar que tinha apenas um motel, um minimercado, e o prédio da alfândega. A fronteira com o México ficava a apenas alguns metros, e os dois tiraram uma série de fotografias de pernas abertas, com um pé em cada país. Foram até o minimercado. Perguntaram sobre as Valkírias, e a dona da lanchonete disse que tinha visto “aquelas lésbicas” na parte da manhã, mas não estavam mais ali.
– Seguiram para o México? – quis saber Paulo.
– Não, não. Pegaram a estrada em direção a Tucson.
Andaram de volta até o motel, e sentaram-se na varanda. O carro estava estacionado bem na frente deles.
– Veja como este automóvel está cheio de poeira – disse Paulo, depois de alguns minutos. –
Quero lavá-lo.
– O dono do motel não vai gostar de saber que a gente está usando água para isso. Estamos no deserto, lembra?
Paulo não disse nada. Levantou-se, tirou a caixa de lenços de papel do porta-luvas, e começou a limpar o carro. Ela continuou na varanda.
“Ele está agitado. Não consegue ficar quieto”, pensou Chris.
– Quero lhe falar algo sério – disse.
– Você tem feito bem seu trabalho, não se preocupe – respondeu ele, enquanto gastava um lenço de papel atrás do outro.
– É justamente sobre isto que quero lhe falar – insistiu Chris. – Não vim aqui para fazer um trabalho. Vim porque achei que nosso casamento estava acabando.
“Ela também está sentindo isso”, pensou ele. Mas continuou concentrado em sua tarefa.
– Sempre respeitei sua busca espiritual, mas tenho a minha – disse Chris. – E vou continuar tendo, quero deixar isso bem claro. Vou continuar indo à igreja.
– Também vou à igreja.
– Mas isso aqui é diferente, você sabe. Você escolheu esta maneira de comunicar-se com Deus, e eu escolhi outra.
– Sei disso. Não quero mudar.
– Entretanto – ela respirou fundo, porque não sabia qual seria a resposta dele – alguma coisa está acontecendo comigo. Eu também quero conversar com meu anjo. Levantou-se, e foi até onde ele estava. Começou a catar os lenços de papel espalhados pelo chão.
– Me faz um favor? – disse, olhando no fundo dos olhos do marido. – Não me abandone no meio do caminho.
O posto de gasolina tinha uma pequena lanchonete na parte dos fundos. Sentaram-se perto da janela de vidro. Tinham acabado de acordar, e o mundo ainda estava quieto. Do lado de fora, a planície, a imensa reta asfaltada e o silêncio. Chris sentiu saudades de Borrego Springs, de Gringo Pass, e de Indio. Naqueles lugares o deserto tinha rosto, montanhas, vales, histórias de pioneiros e conquistadores. Aqui, porém, tudo que podia ver era a imensidão vazia. E o sol. O sol que daqui a pouco ia colorir tudo de amarelo, elevar a temperatura até 550C à sombra (embora não houvesse sombra), e tornar a vida insuportável para homens e animais.
O rapaz veio atendê-los. Era chinês, e ainda falava com sotaque – não devia estar ali há
muito tempo. Chris imaginou quantas voltas o mundo precisou dar para trazer aquele chinês até uma lanchonete no meio do deserto.
Pediram café, ovos, bacon e torradas. E continuaram em silêncio. Chris reparou os olhos do rapaz – pareciam fitar o horizonte, pareciam olhos de quem tem a alma crescida.
Mas não, ele não fazia um exercício sagrado, ou tentava desenvolver-se espiritualmente. Aquilo era um olhar de tédio. O rapaz não estava vendo nada – nem o deserto, nem a estrada, nem os dois fregueses que apareceram de manhã bem cedo. Limitava-se a repetir os movimentos que lhe haviam ensinado
– colocar o café na máquina, fritar os ovos, dizer “posso ajudá-los?”, ou “obrigado” como se fosse um animal amestrado, sem sentimentos ou reflexos. O sentido de sua vida parecia ter ficado na China, ou desaparecido na imensidão da planície sem árvores ou rochedos.
O café chegou. Começaram a tomar sem pressa. Não tinham onde ir. Paulo olhou o carro lá fora. De nada havia adiantado limpá-lo dois dias atrás. Estava de novo coberto de poeira.
Escutaram um pequeno ruído ao longe. Daqui a pouco ia passar o primeiro caminhão do dia. O rapaz deixaria de lado seu torpor, os ovos e o bacon e iria olhar para fora tentando identificar alguma coisa, querendo sentir-se parte de um mundo que se movia, que passava na frente da lanchonete. Era tudo o que ele podia fazer: olhar de longe e ver o mundo passar. Provavelmente já não sonhava mais em largar a lanchonete um dia e pedir carona em um daqueles caminhões. Estava viciado em Silêncio e Vazio. O ruído começou a aumentar, e não se parecia com o motor de um caminhão. Por um instante, o coração de Paulo encheu-se de esperança. Mas era apenas esperança, nada mais. Procurou não pensar nisso.