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Aos poucos, o ruído foi crescendo. Chris virou-se para ver o que acontecia lá fora. Paulo manteve os olhos fixos no café. Tinha medo de que ela percebesse sua ansiedade. Os vidros do restaurante tremeram levemente com o barulho. O rapaz parecia não dar muita importância – conhecia aquele ruído, e não gostava dele.

Mas Chris olhava fascinada. O horizonte enchera-se de brilho, o sol refletia nos metais, e –

na sua imaginação – o barulho parecia sacudir as ervas, o asfalto, o teto, o restaurante, as vidraças. Com um estrondo, elas entraram no posto de gasolina, e a estrada reta, o deserto plano, a erva rasteira, o rapaz chinês, os dois brasileiros que procuravam um anjo, tudo foi afetado por aquela presença.

Os belos cavalos deram voltas e mais voltas no posto, perigosamente próximos um do outro, os chicotes estalando no ar, as mãos enluvadas brincando com a habilidade e o perigo. Elas gritavam como os cowboys tocando seu gado, queriam acordar o deserto, dizer que estavam vivas e alegres por causa da manhã. Paulo tinha levantado os olhos, e olhava fascinado, mas o medo continuava no seu coração. Podia ser que não parassem ali, que estivessem fazendo tudo aquilo apenas para despertar o rapaz chinês, explicar para ele que ainda existia vida, alegria, e habilidade.

De repente, obedecendo a um sinal invisível, os animais pararam. As Valkírias desceram. As roupas de couro, os lenços coloridos tapando parte do rosto, deixando só os olhos de fora, para não respirarem a poeira.

Tiraram os lenços, e esfregaram nas roupas negras, sacudindo o deserto de seus corpos. Depois colocaram-nos no pescoço, e entraram na lanchonete.

Eram oito mulheres.

Não pediram nada. O rapaz chinês parecia saber o que queriam – já estava colocando ovos, bacon, torradas na chapa aquecida. Mesmo com toda aquela gente, ele continuava parecendo uma máquina obediente.

– Por que o rádio está desligado? – perguntou uma delas.

A obediente máquina chinesa foi lá e ligou o rádio.

– Aumente – disse outra.

O robô chinês colocou no volume máximo. A sensação era que, de repente, o esquecido posto de gasolina havia se transformado numa discoteca de Nova York. Algumas das mulheres acompanhavam o ritmo com palmas, enquanto outras tentavam conversar aos gritos, no meio daquela barulheira toda.

Mas uma delas não se movia, não se interessava pela conversa, nem pelas palmas, nem pelo café da manhã.

Fixava o olhar em Paulo. E Paulo, apoiando o queixo com a mão esquerda, sustentava o olhar da mulher.

Chris também olhou para ela. Parecia ser a mais velha, com os cabelos ruivos, encaracolados, compridos.

Sentiu uma pontada no coração. Alguma coisa estranha, muito estranha, estava acontecendo

– embora não soubesse explicar. Talvez o fato de ter olhado o horizonte todos aqueles dias – ou treinado sem parar a canalização – estivesse mudando a maneira de ver as coisas à sua volta. Os pressentimentos estavam presentes, e se manifestavam.

Fingiu não notar que os dois se olhavam. Mas seu coração dava sinais estranhos – e não sabia se eram bons ou ruins.

“Took estava certo”, pensava Paulo. “Disse que seria muito fácil estabelecer contato com elas.”

Aos poucos, as outras Valkírias foram percebendo o que se passava. Primeiro, observaram a mais velha, e, acompanhando seu olhar, viram a mesa em que Paulo e Chris estavam sentados. Já não conversavam mais, e não acompanhavam com o corpo o ritmo da música.

– Desligue o rádio – disse a mais velha para o chinês.

Como sempre, ele obedeceu. Agora, o único ruído que se podia ouvir era dos ovos e do bacon fritando na chapa.

A mais velha levantou-se e dirigiu-se até a mesa. Ficou em pé, ao lado dos dois. As outras acompanhavam a cena.

– Onde arranjou este anel? – perguntou.

– Na mesma loja em que você comprou seu broche – respondeu ele. Foi então que Chris notou um broche de metal preso na jaqueta de couro. Tinha o mesmo desenho do anel que Paulo usava no dedo anular da mão esquerda.

“Por isso ele estava com a mão no queixo.”

Ela já vira muitos anéis da Tradição da Lua – de todas as cores, metais e formatos – sempre na forma de uma serpente, o símbolo da sabedoria. Nunca, entretanto, vira um semelhante ao de seu marido. Uma das primeiras providências de J. tinha sido entregar aquele anel, dizendo que assim ele completava “a Tradição da Lua, um ciclo interrompido pelo medo”. Era o ano de 1982, e ela estava com Paulo e J. na Noruega.

E agora, no meio do deserto – uma mulher com o broche. O mesmo desenho.

“As mulheres sempre reparam em jóias.”

– O que você quer? – tornou a perguntar a ruiva.

Paulo também ficou de pé. Os dois se olharam, frente a frente. O coração de Chris apertou mais ainda – tinha absoluta certeza de que não era ciúme.

– O que você quer? – repetiu ela.

– Conversar com meu anjo. E mais uma coisa.

Ela pegou a mão de Paulo. Passou seus dedos no anel, e, pela primeira vez, havia um toque feminino naquela mulher.

– Se você comprou este anel na mesma loja que eu, deve saber como se faz – disse, com os olhos fixos nas serpentes. – Se não comprou, venda para mim. É uma bela jóia. Não era uma jóia. Era apenas um anel de prata, com duas serpentes. Cada serpente tinha duas cabeças, e o desenho era muito simples.

Paulo não respondeu nada.

– Você não sabe conversar com anjos, e este anel não é seu – disse a Valkíria depois de algum tempo.

– Sei, sim. Canalização.

– Exato – respondeu a mulher. – Nada além disso.

– Eu disse que queria mais uma coisa.

– O quê?

– Took viu o seu anjo. Quero ver o meu. Conversar com ele, frente a frente.

– Took?

Os olhos da mulher ruiva percorreram o passado, tentando recordar quem era Took, onde vivia.

– Sim, agora me lembro – disse. – Ele vive no deserto. Justamente porque viu seu anjo.

– Não. Ele aprende a ser Mestre.

– Este negócio de ver anjo é pura lenda. Basta conversar com ele. Paulo deu um passo em direção à Valkíria.

Chris conhecia o truque que seu marido estava usando: ele chamava de “desestabilização”. Normalmente duas pessoas sempre conversam mantendo um braço de distância entre elas. Quando uma se aproxima demais, o raciocínio da outra fica desorientado, sem que perceba o que está acontecendo.

– Quero ver meu anjo. – Ele estava bem próximo da mulher, e mantinha os olhos fixos nela.

– Para quê? – a Valkíria parecia intimidada. O truque estava dando resultado.

– Porque estou desesperado, e precisando de ajuda. Conquistei coisas importantes para mim, e vou destruí-las porque digo a mim mesmo que elas perderam o sentido. Sei que é mentira, que elas continuam importantes e, se as destruir, estarei destruindo a mim também. Ele mantinha o mesmo tom de voz, sem demonstrar qualquer emoção pelo que dizia.

– Quando descobri que para conversar com o anjo bastava a canalização, perdi o interesse. Não era mais um desafio, era algo que já conhecia bem. Então notei que meu caminho na magia estava prestes a acabar; o Desconhecido estava ficando familiar demais para mim. Chris estava surpresa com a confissão, feita num lugar público, diante de pessoas que nunca tinha visto.

– Para continuar neste caminho, preciso de algo maior – concluiu ele. – Preciso de montanhas cada vez mais altas.

A Valkíria ficou um momento sem dizer nada. Também ela estava surpresa com a conversa do estrangeiro.