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Não havia suor – a secura do ar era tão grande que todo líquido evaporava-se imediatamente, como dissera Took. Chris sabia que estavam desidratando com rapidez. Embora tivesse bebido toda a água que podia, embora tivesse se preparado para o deserto ao meio-dia. Embora não estivesse nua.

“Mas ela está me despindo com seus olhos”, pensou. Não à maneira dos homens na rua, mas do jeito – do terrível jeito – que as mulheres fazem, quando…”

Havia um limite. Ela não sabia qual era, nem como, nem quando, mas daqui a pouco o sol começaria a causar danos. Entretanto, todos continuavam imóveis – e tudo aquilo acontecia por causa dela, porque ela insistira em ficar perto – mensageiras dos deuses, conduziam os heróis à morte e ao Paraíso. Tinha feito uma besteira, mas agora era tarde. Viera porque seu anjo havia mandado; ele dissera que Paulo ia precisar dela naquela tarde.

“Não, não foi besteira. Ele insistiu que eu viesse”, pensou.

Seu anjo – estava conversando com ele! Ninguém sabia – nem Paulo. Começou a sentir-se tonta, e teve certeza de que ia desmaiar daí a pouco. Mas iria até o fim

– agora já não era mais uma questão de estar ao lado do marido, obedecer ao anjo, ter ciúmes. Agora era o orgulho de uma mulher – diante de outra.

– Coloque os óculos – disse Vahalla. – Esta luz pode cegar.

– Você está sem óculos – respondeu. – E não está com medo.

Vahalla fez um sinal. E, de repente, o sol parecia ter se multiplicado em dezenas deles. As Valkírias estavam fazendo com que o sol refletisse no metal dos arreios, e dirigiam todos os raios para seu rosto. Ela viu um semicírculo brilhante, apertou um pouco as pálpebras, e manteve seu olhar fixo na Valkíria.

Entretanto, agora não podia enxergá-la direito. Ela parecia crescer, crescer, e a confusão em sua mente aumentou. Sentiu que ia cair, e, neste momento, braços cobertos de couro a ampararam. Paulo assistiu Vahalla pegar sua mulher nos braços. Podia ter evitado tudo aquilo. Podia ter insistido em que ficasse no hotel – não importava o que estivesse pensando. Desde o momento em que viu o broche, soube a que Tradição as Valkírias pertenciam.

Elas também tinham visto seu anel, e sabiam que ele já fora testado em muitas coisas, e seria difícil assustá-lo. Mas fariam de tudo para provar a fibra de qualquer estranho que se aproximasse do grupo. Como sua mulher, por exemplo.

Entretanto não podiam impedir Chris, nem ninguém – mas ninguém mesmo –, de conhecer o que conheciam. Tinham feito um juramento: tudo que estava oculto, precisava ser revelado. Chris estava agora sendo testada na primeira grande virtude de quem busca o caminho espirituaclass="underline" coragem.

– Ajude-me – disse a Valkíria.

Paulo aproximou-se e ajudou-a a segurar a mulher. Foram até o carro e a deitaram no banco de trás.

– Não se preocupe. Vai voltar a si em instantes. Com uma grande dor de cabeça. Ele não estava preocupado. Estava orgulhoso.

Vahalla foi até seu cavalo e trouxe um cantil. Paulo reparou que ela já havia colocado os óculos escuros – também devia ter chegado ao seu limite.

Passou água na testa de Chris, em seus pulsos e atrás das orelhas. Ela abriu os olhos, piscou um pouco, e sentou-se.

– Romper um acordo – disse, olhando para a Valkíria.

– Você é uma mulher interessante – respondeu Vahalla, passando a mão em seu rosto. –

Coloque os óculos.

Vahalla acariciava os cabelos de Chris. E, mesmo que agora as duas estivessem usando óculos, Paulo sabia que continuavam se olhando.

Andaram até a estranha porta da montanha. Ali, Vahalla virou-se para as outras Valkírias.

– Pelo amor. Pela vitória. E pela glória de Deus.

As palavras dos que conheciam anjos. A mesma frase de J.

Os animais, até então silenciosos e imóveis, começaram a se mexer. Uma nuvem de poeira cobriu o lugar, as Valkírias fizeram as mesmas brincadeiras do posto de gasolina – passando perto uma da outra – e, minutos depois, desapareciam num dos lados da montanha. Vahalla então se virou para eles:

– Vamos entrar – disse.

Não havia uma porta, mas uma grade. Na frente, uma tabuleta:

PERIGO

O GOVERNO FEDERAL PROÍBE

A ENTRADA

INFRATORES SERÃO PROCESSADOS

– Não acredite – disse a Valkíria. – Eles não têm como ficar vigiando isto.

Era uma velha mina de ouro abandonada. Vahalla usava uma lanterna, e começaram a andar com cuidado para não bater com a cabeça nas vigas do teto. Paulo notou que, aqui e ali, a terra havia deslizado. Talvez fosse perigoso mesmo – mas não era hora de pensar nisso. À medida que entravam, a temperatura ia descendo, até tornar-se agradável. Ficou com medo de faltar ar, mas Vahalla andava como se conhecesse o lugar muito bem – já devia ter estado ali muitas vezes, e continuava viva. Também não era hora de pensar nisso.

Depois de dez minutos de caminhada, a Valkíria parou. Sentaram-se no chão, e ela colocou a lanterna no meio dos três.

– Anjos – disse ela. – Anjos são visíveis para quem aceita a luz. E rompe o acordo das trevas.

– Não tenho acordo com as trevas – respondeu Paulo. – Já tive. Não tenho mais.

– Não falo de acordo com Lúcifer, ou com Satã, ou com… – de repente ela começou a falar o nome de diversos demônios, e seu rosto parecia estranho.

– Não pronuncie estes nomes – interrompeu Paulo. – Deus está nas palavras, e o demônio também.

Vahalla riu.

– Parece que você aprendeu a lição. Agora rompa o acordo.

– Não tenho acordo com o mal – repetiu.

– Falo do contrato de derrota.

Paulo lembrou-se do que J. dissera – o homem sempre destruía o que mais amava. Mas J. não falara em acordos; conhecia Paulo o suficiente para saber que seu acordo com o mal já fora rompido há

muito tempo. O silêncio dentro da mina era pior que o do deserto. Não se ouvia absolutamente nada, exceto a voz de Vahalla – que parecia diferente.

– Temos um contrato entre nós: não vencer, quando é possível a vitória – insistiu ela.

– Jamais fiz um acordo desses – disse Paulo pela terceira vez.

– Todos fizeram. Em algum momento na vida, todos nós fizemos este acordo. Por isso há

um anjo com uma espada de fogo na porta do Paraíso. Para deixar entrar apenas os que rompem este acordo. Sim, ela tem razão, pensava Chris. Todos fizeram.

– Você me acha bonita? – perguntou Vahalla, mudando de novo o tom de voz.

– Você é uma mulher linda – respondeu Paulo.

– Um dia, quando eu era adolescente, vi minha melhor amiga chorando. Saíamos juntas sempre, tínhamos um imenso amor uma pela outra, e perguntei o que se passava. Depois de muito insistir, ela terminou me contando que seu namorado estava apaixonado por mim. Eu não sabia, mas naquele dia fiz o acordo. Sem compreender direito por que, comecei a engordar, a cuidar mal de meu corpo, a ficar feia. Porque

– inconscientemente – achava que minha beleza era uma maldição, fez sofrer minha melhor amiga.

“Em pouco tempo, passei a destruir também o sentido de minha vida, porque já não ligava para mim mesma. Até que chegou o momento em que tudo à minha volta tornou-se insuportável; pensei em morrer.”

Vahalla riu.

– Como vê, rompi o acordo.

– É verdade – disse Paulo.

– Sim, é verdade – disse Chris. – Você é linda.

– Estamos no ventre da montanha – continuou a Valkíria. – Lá fora brilha o sol, e aqui, tudo é escuro. Mas a temperatura é agradável, podemos dormir, não precisamos nos preocupar com nada. Aqui é a escuridão do Acordo.

Ela levou a mão ao zíper de seu casaco de couro.