– Rompa o acordo – disse. – Pela glória de Deus. Pelo amor. E pela vitória. Começou a abaixar o zíper lentamente. Não usava nada por baixo. Os seios apareceram. E a luz da lanterna fazia brilhar, entre eles, uma medalha de ouro.
– Pegue – disse.
Paulo tocou a medalha. O arcanjo Miguel.
– Tire do meu pescoço.
Ele retirou a medalha, e a manteve entre suas mãos.
– Segurem, os dois, a medalha.
– Não preciso ver meu anjo! – Era a primeira vez que Chris falava desde que entraram na mina. – Não preciso, basta conversar com ele!
Paulo parou com a medalha na mão.
– Já comecei essa conversa – continuou Chris. – Sei que posso e isso basta. Paulo não acreditou. Mas Vahalla sabia que era verdade; lera isto em seus olhos, quando estavam do lado de fora. Sabia também que seu anjo queria que estivesse ali, junto com o marido. Mesmo assim, precisou testar sua coragem. Era a regra da Tradição.
– Está bem – disse a Valkíria.
Com um rápido movimento, apagou a lanterna. E a escuridão foi completa.
– Coloque o cordão em seu pescoço – disse para Paulo. – E segure a medalha com as mãos juntas, em oração.
Paulo fez o que ela estava mandando. Tinha medo de uma escuridão tão completa; lembrava coisas que ele não queria recordar.
Sentiu que Vahalla se aproximava por detrás. Suas mãos tocaram a cabeça de Paulo. A escuridão parecia sólida. Nada, nem uma fresta de luz entrava ali. Vahalla começou a fazer uma oração numa língua estranha. Primeiro ele tentou identificar o que ela dizia. Depois, à medida que os dedos dela passavam por sua cabeça, Paulo sentia a medalha esquentando. Ele concentrou-se no calor em suas mãos.
A escuridão se transformava. Várias cenas de sua vida começaram a passar diante dele. Luz e sombras, luz e sombras, e – de repente, estava de novo na escuridão.
– Não quero me lembrar disso… – pediu para a Valkíria.
– Lembre. Seja o que for, procure lembrar-se de cada minuto.
A escuridão mostrava-lhe terrores. Terrores ocorridos há quatorze anos.
Havia um bilhete em cima da mesa do café. “Eu te amo. Volto logo.” Embaixo, ela havia colocado a data inteira: “25 de maio de 1974”.
Engraçado. Colocar data em um bilhete de amor.
Tinha acordado um pouco tonto, ainda surpreso com o sonho. Nele, o diretor da gravadora lhe oferecia um emprego. Não precisava de emprego: o diretor da gravadora é que funcionava como seu empregado – dele e de seu parceiro. Os discos estavam nos primeiros lugares em execução, vendiam milhares de cópias, e de todos os cantos do Brasil chegavam cartas. As pessoas queriam saber o que era a Sociedade Alternativa.
“Basta prestar atenção na letra da música”, pensou consigo mesmo. Não era uma música –
era um mantra de ritual mágico, com as palavras da Besta do Apocalipse sendo lidas atrás, em tom baixo. Quem cantasse aquela música estaria invocando as forças das Trevas. E todos cantavam. Ele e o parceiro já haviam preparado tudo. O dinheiro ganho com direitos autorais estava sendo aplicado na compra de um terreno perto do Rio de Janeiro. Lá, sem que o governo militar soubesse, recriariam o que, quase cem anos atrás, a Besta procurou fazer em Cefalu, na Sicília. Mas a Besta fora expulsa pelas autoridades italianas. Ela errara em muitos pontos – não conseguira discípulos em número suficiente, não sabia como ganhar dinheiro. Dissera a todos que seu número era 666, que vinha criar um mundo onde os fortes seriam servidos pelos fracos, e a única lei seria fazer tudo que se tivesse vontade. Mas não soube espalhar direito suas idéias – poucas pessoas tinham levado suas palavras a sério. Ele e seu parceiro – Raul Seixas – bem, era completamente diferente! Raul cantava, o país inteiro ouvia. Eram jovens, e estavam ganhando dinheiro. Sim, verdade que o Brasil vivia debaixo de uma ditadura militar, mas o governo estava preocupado com guerrilheiros. Não perdia seu tempo com um cantor de rock; muito pelo contrário – as autoridades achavam que aquilo mantinha os jovens longe do comunismo.
Tomou o café e chegou à janela. Ia dar um passeio, depois encontraria o parceiro. Não tinha a menor importância que ninguém o conhecesse, e que seu amigo fosse famoso. O que contava é que estava ganhando dinheiro, isto permitiria que colocasse as idéias em andamento. As pessoas do meio musical, e as pessoas do meio mágico – ah, estas sabiam! O anonimato para o grande público era até
engraçado – mais de uma vez saboreou o gostinho de ver alguém comentando sobre seu trabalho – sem perceber que o autor estava perto escutando.
Voltou-se para colocar o tênis. Quando abaixou, sentiu uma vertigem. Levantou a cabeça. O apartamento parecia mais escuro do que deveria estar. Fazia sol lá
fora, ele havia acabado de voltar da janela. Alguma coisa estaria queimando – um aparelho elétrico, talvez, porque o fogão estava desligado. Procurou em todos os cantos. Nada. O ar estava pesado. Resolveu sair logo – calçou o tênis de qualquer maneira e, pela primeira vez, aceitou o fato de que estava passando mal.
“Pode ser alguma coisa que comi”, disse para si mesmo. Mas quando comia alguma coisa errada, seu corpo inteiro dava o sinal, já conhecia isso. Não estava com enjôo, nem vômitos. Só aquela tontura que não queria passar.
Escuro. A escuridão aumentava cada vez mais, parecia uma nuvem cinzenta à sua volta. Sentiu, de novo, a vertigem. Sim, tinha que ser alguma coisa que havia comido – “ou talvez um efeito retardado do ácido”, pensou. Mas não tomava LSD há quase cinco anos. Os efeitos retardados tinham desaparecido nos seis primeiros meses, e nunca mais voltaram. Ele estava com medo, precisava sair.
Abriu a porta – a vertigem ia e voltava, e podia passar mal na rua. Era arriscado sair, melhor ficar em casa e esperar. Tinha aquele bilhete em cima da mesa – daqui a pouco ela estava em casa –
podia esperar. Sairiam juntos até a farmácia, ou a um médico, embora detestasse médicos. Não podia ser nada grave. Ninguém tem ataque de coração com 26 anos.
Ninguém.
Sentou-se no sofá. Precisava se distrair, não devia pensar nela, senão o tempo demorava mais a passar. Tentou ler o jornal, mas a vertigem, a tontura, ia e voltava, cada vez com mais força. Alguma coisa o estava puxando para dentro de um buraco negro que parecia se formar no meio da sala. Começou a ouvir barulhos – risos, vozes, coisas quebrando. Nunca tinha acontecido aquilo – nunca! Sempre que tomava algo, sabia que estava drogado, que era uma alucinação, e passaria com o tempo. Mas aquilo – aquilo era terrivelmente real!
Não, não podia ser real. A realidade eram os tapetes, a cortina, a estante, a mesa do café
ainda com restos de pão. Fez um esforço para concentrar-se no cenário à sua volta, mas a sensação de buraco negro à sua frente, as vozes, os risos, tudo continuava.