Definitivamente, não estava acontecendo nada daquilo. Tinha praticado magia durante seis anos. Feito todos os rituais. Sabia que tudo não passava de sugestão, de efeito psicológico – tudo jogava com a imaginação – nada mais.
O pânico aumentava, a vertigem estava mais forte – puxando para fora do corpo, para um mundo escuro, para aqueles risos, aquelas vozes, aqueles barulhos – reais!
“Não posso ter medo. O medo faz a coisa voltar.”
Tentou controlar-se, foi até a pia e lavou o rosto. Sentiu-se melhor, a sensação parecia ter acabado. Colocou o tênis e procurou esquecer tudo. Brincou com a idéia de contar ao parceiro que entrara num transe, tivera contato com os demônios.
E foi só pensar nisso que a vertigem voltou – mais forte.
“Volto logo”, dizia o bilhete, e ela não chegava!
“Nunca tive resultados concretos no plano astral.” Nunca tinha visto nada. Nem anjos nem demônios nem espíritos dos mortos. A Besta escreveu em seu diário que materializava coisas, mas era mentira, a Besta não tinha chegado lá, ele sabia disso. A Besta tinha fracassado. Ele gostava das suas idéias porque eram idéias rebeldes, chiques, das quais poucas pessoas haviam escutado falar. E as pessoas sempre respeitam mais aquele que diz coisas que ninguém entende. Do resto – Hare Krishna, Meninos de Deus, Igreja de Satã, Maharishi –, do resto todo mundo participava. A Besta – a Besta só para os eleitos! “A lei do forte”, dizia um texto dela. A Besta estava na capa do Sargent Pepper’s, um dos mais conhecidos discos dos Beatles – e quase ninguém sabia. Talvez nem os Beatles soubessem o que estavam fazendo quando colocaram aquela fotografia lá.
O telefone começou a tocar. Podia ser sua namorada. Mas, se estava escrito “volto logo”, para que telefonar?
Só se alguma coisa estivesse acontecendo.
Por isso ela não chegava. A vertigem agora voltava em intervalos menores, e tudo ficava negro de repente. Sabia – alguma coisa lhe dizia – que não podia deixar aquela aquela sensação tomar conta. Algo terrível podia acontecer – talvez entrasse ali, naquela escuridão, e nunca mais saísse. Precisava manter o controle a qualquer custo – precisava ocupar sua mente, ou aquela coisa o dominaria. O telefone. Concentrou-se no telefone. Falar, conversar, distrair o pensamento, levá-lo para longe daquela escuridão, aquele telefone era um milagre, uma saída. Sabia disso. Sabia, de alguma maneira, que não podia se entregar. Precisava atender o telefone.
–Alô?
Era uma voz de mulher. Mas não era a namorada – era Argéles.
–Paulo?
Ele ficou quieto.
–Paulo, você está me ouvindo? Preciso que você venha aqui em casa! Está acontecendo uma coisa esquisita!
–O que está acontecendo?
–Você sabe, Paulo! Me explique, pelo amor de Deus!
Desligou antes de ouvir o que não queria. Não era um efeito retardado de droga. Não era um sintoma de loucura. Não era um ataque cardíaco. Era real. Argéles participava dos rituais, e “aquilo”
também estava acontecendo com ela.
Entrou em pânico. Ficou alguns minutos sem pensar, e a escuridão foi se apossando dele, chegando cada vez mais perto, fazendo com que pisasse na beira do lago da morte. Ele ia morrer – por tudo o que tinha feito sem acreditar, por tanta gente envolvida sem saber, por tanto mal espalhado sob a forma de bem. Morreria, e as Trevas existiam, porque se manifestavam agora, diante dos seus olhos, mostrando que as coisas terminavam funcionando um dia, cobrando seu preço pelo tempo em que foram usadas, e ele tinha que pagar – porque não quisera saber o preço antes, pensou que era grátis, que tudo era mentira ou sugestão da mente!
Os anos no colégio jesuíta voltaram, e ele pediu forças para chegar até uma igreja, pedir perdão, pedir ao menos que Deus salvasse sua alma. Precisava conseguir. Sempre que mantinha a mente ocupada, conseguia dominar um pouco a vertigem. Precisava de tempo suficiente para ir até a igreja… Que idéia ridícula!
Olhou a estante. Resolveu saber quantos discos tinha – afinal de contas, sempre adiara esta providência! Sim, era algo muito importante saber o número exato de seus discos, e começou a contar: um, dois, três… conseguia! Conseguia segurar a vertigem, o buraco negro que puxava. Contou todos os discos –
e recontou para ver se estava certo. Agora os livros. Precisava contar para saber quantos livros tinha. Teria mais livros que discos? Começou a contar. A vertigem parava, e tinha muitos livros. E revistas. E jornais alternativos. Ia contar tudo, anotar num papel, saber realmente quantas coisas possuía. Era importantíssimo.
Estava contando os talheres da casa quando a chave girou na porta. Ela estava chegando, afinal. Mas não podia se distrair – não podia sequer conversar sobre o que estava acontecendo; em algum momento, aquilo ia parar. Tinha certeza disso.
Ela foi direto para a cozinha e abraçou-o chorando.
–Socorro… tem alguma coisa estranha. Você sabe o que é, me ajude!
Ele não queria perder a conta dos talheres – era a sua salvação. Manter a mente ocupada. Melhor que ela não tivesse chegado – não estava ajudando nada. E pensava como Argéles – que ele sabia tudo, que sabia como parar aquilo.
–Mantenha a mente ocupada! – gritou, como se estivesse possuído. – Conte quantos discos tem! E quantos livros!
Ela olhou sem entender. E como um robô caminhou em direção à estante. Mas não conseguiu chegar até lá. De repente, atirou-se ao chão.
–Quero minha mãe… – repetia, em voz baixa. – Quero minha mãe…
Ele também queria. Queria ligar para os pais, pedir socorro – os pais que não via nunca, que pertenciam a um mundo burguês, já há muito abandonado. Tentou continuar a contagem dos talheres, mas ela estava ali, chorando como criança, arrancando os próprios cabelos. Aquilo era demais. Ele era o responsável pelo que estava acontecendo, porque a amava, e havia ensinado os rituais, garantido que ela ia conseguir o que queria, que as coisas melhoravam a cada dia (embora nem por um momento acreditasse no que falava!). Agora ela estava ali, pedindo ajuda, confiando nele – e ele não sabia o que fazer.