Por um instante pensou em dar outra ordem, mas já havia esquecido quantos talheres possuía, e o buraco negro apareceu de novo com força.
–Me ajude você – disse. – Eu não sei.
E começou a chorar.
Chorava de medo, como quando era criança. Queria os pais, como ela. Estava suando frio, e tinha certeza de que morreria. Pegou-a pela mão, as mãos dela também estavam frias, embora as roupas estivessem empapadas de suor. Foi até o banheiro para lavar o rosto – era assim que faziam quando o efeito da droga estava muito forte. Funcionava também para “aquilo” – ele já havia experimentado. O corredor parecia imenso, a coisa agora estava mais forte – já não contava discos, livros, lápis, talheres. Não tinha mais como fugir.
“Água corrente.”
O pensamento vinha de um outro canto de sua cabeça, um lugar onde a escuridão parecia não penetrar. Água corrente! Sim, existia o poder das trevas, o delírio, a loucura – mas existiam outras coisas!
–Água corrente – disse para ela, enquanto lavavam o rosto. Água corrente afasta o mal. Ela notou a segurança na voz dele. Ele sabia, sabia tudo. Ia salvá-la. Ele abriu o chuveiro, e os dois entraram – com roupas, documentos, dinheiro. A água fria molhou seus corpos e, pela primeira vez desde que tinha acordado, sentiu um certo alívio. A vertigem sumira. Ficaram uma, duas, três horas debaixo da água, sem conversar, tremendo de frio e de medo. Saiu do chuveiro apenas uma vez, a fim de ligar para Argéles e pedir que fizesse o mesmo. A vertigem voltou, e teve que retornar correndo para debaixo da água. Ali tudo parecia calmo, mas precisava desesperadamente entender o que acontecia.
–Eu nunca acreditei – disse.
Ela o olhou sem entender. Há dois anos eram hippies sem um tostão, e agora as músicas dele eram ouvidas de norte a sul do país. Estava no auge do sucesso – embora poucas pessoas soubessem seu nome; e dizia que tudo aquilo era fruto dos rituais, dos estudos ocultos, do poder da magia.
–Nunca acreditei – continuou. – Ou não teria me arriscado por esses caminhos! Jamais teria me arriscado, e arriscado você.
–Faca alguma coisa, pelo amor de Deus! – disse ela. – Não podemos ficar para sempre aqui debaixo!
Saiu mais uma vez do chuveiro, de novo experimentou a tontura, o buraco negro. Foi até a estante, e voltou com uma Bíblia. Tinha uma Bíblia em casa – apenas para ler o Apocalipse, ter certeza do reino da Besta. Fazia tudo conforme mandavam os seguidores da Besta – e, no fundo, não acreditava em nada.
–Vamos rezar para Deus – pediu. Sentia-se ridículo, desmoralizado diante da mulher que tentara impressionar durante todos aqueles anos. Era fraco, ia morrer, precisava humilhar-se, pedir perdão. O mais importante agora era salvar sua alma. Tudo era verdade, afinal. Abraçou-se com a Bíblia e rezou as orações que aprendera na infância – Pai-Nosso, Ave- Maria, Credo. Ela relutou no início, depois passou a acompanhá-lo. Então ele abriu o livro ao acaso. A água do chuveiro castigava as páginas, mas ele conseguia ler a história de alguém que pede algo a Jesus, e este diz para que o sujeito tenha fé. O sujeito responde: “Senhor, eu creio – ajudai minha incredulidade.”
–Senhor, eu creio, ajudai minha incredulidade! – gritou, entre o ruído da água que caía.
–Eu creio, Senhor, ajudai minha incredulidade! – disse ela, baixinho, aos prantos. Começou a sentir-se estranhamente calmo. Se existia o mal terrível que experimentavam, então era verdade que o reino dos céus também existia, e, junto com ele, tudo o mais que havia aprendido e negado durante toda a vida.
–Existe a vida eterna – disse, embora sabendo que ela nunca mais acreditaria em suas palavras. – Não me importa morrer. Você não pode também ter medo.
–Não tenho medo – ela respondeu. – Não tenho medo, mas acho uma injustiça. Uma pena. Tinham 26 anos. Era realmente uma pena.
–Vivemos tudo que alguém da nossa idade podia viver – respondeu ele. – Tem gente que não chegou nem perto.
–É verdade – disse ela. – Podemos morrer.
Ele virou o rosto para cima, e o barulho da água em seus ouvidos parecia um trovão. Não estava mais chorando, nem com medo; apenas pagava o preço de sua ousadia.
–Senhor, eu creio, ajudai minha incredulidade – repetiu. – Queremos fazer uma troca. Oferecemos qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, pela salvação de nossas almas. Oferecemos nossas vidas, ou tudo que temos. Aceitai, Senhor.
Ela olhava para ele com desprezo. O homem que admirava tanto. O poderoso, o misterioso, o corajoso homem que admirava tanto, que havia convencido tantas pessoas sobre a Sociedade Alternativa, que pregava um mundo onde tudo era permitido, onde os fortes dominariam os fracos. Aquele homem estava ali, chorando, chamando a mãe, rezando como uma criança, e dizendo que sempre tivera muita coragem –
porque não acreditava em nada.
Ele virou-se, pediu que os dois olhassem para cima e fizessem a troca. Ela fez. Havia perdido seu homem, sua fé, e sua esperança. Não tinha mais nada a perder. Então ele colocou a mão na torneira e lentamente começou a fechá-la. Agora podiam morrer, Deus os havia perdoado.
O jato de água transformou-se em pingos, e depois houve um silêncio completo. Os dois, ensopados até os ossos, se olhavam. A vertigem, o buraco negro, os risos e os barulhos, tudo havia desaparecido.
Estava deitado no colo de uma mulher, e chorava. A mão dela tocava seus cabelos.
– Fiz esse acordo – disse, entre lágrimas.
– Não – respondeu a mulher. – Foi uma troca. E houve a troca.
Paulo segurou a medalha do arcanjo com mais força. Sim, houve a troca – e o castigo veio com toda a severidade. Dois dias depois daquela manhã de 1974, eles eram presos pela polícia política brasileira, acusados de subversão por causa da Sociedade Alternativa. Ficou numa cela escura, igual ao túnel negro que vira em sua sala; foi ameaçado de morte, apanhou, mas era uma troca. Quando saiu, rompeu com o parceiro, e foi expulso do mundo musical por longo tempo. Ninguém lhe dava emprego – mas era uma troca. Outras pessoas do grupo não tinham feito a troca. Sobreviveram ao “buraco negro”, passaram a chamá-lo de covarde. Perdeu os amigos, a segurança, a vontade de viver. Passou anos com medo de sair na rua – a vertigem podia voltar, os policiais podiam voltar. E, ainda pior, desde que saiu da prisão, nunca mais tornara a ver sua companheira. Em alguns momentos, arrependeu-se da troca – era preferível morrer do que continuar vivendo daquela maneira. Mas agora era tarde para mudar de novo.