– Seja generoso consigo – respondeu ela. – Você está dando o melhor de si – poucas pessoas saem pelo mundo atrás de anjos. Não esqueça que você rompeu o acordo. O acordo rompido na mina: J. ia ficar feliz! Embora Paulo tivesse quase certeza de que ele já sabia de tudo, e por isso não impedira a viagem para o deserto.
Quando os dois acabavam os exercícios de canalização, ficavam horas seguidas conversando sobre anjos. Mas conversavam apenas entre eles – Vahalla nunca mais tocara no assunto.
Numa daquelas tardes, depois da conversa, procurou a Valkíria.
– Você conhece a Tradição – disse. – Não pode interromper um processo que começou.
– Não estou interrompendo nada – respondeu ela.
– Mas daqui a pouco terei que voltar ao Brasil. Ainda falta aceitar o perdão. E fazer uma aposta.
– Não estou interrompendo o processo – respondeu mais uma vez.
Sugeriu que fossem dar um longo passeio a pé pelo deserto. Sentaram-se lado a lado, assistiram ao pôr-do-sol juntos, falaram de rituais e cerimônias. Vahalla perguntou sobre a maneira de J. ensinar, e Paulo quis saber os resultados da pregação no deserto.
– Preparo o caminho – disse ela, displicentemente. – Cumpro a minha parte, e espero cumpri-la até o final. Depois, saberei qual o próximo passo.
– Como vai saber que chegou o momento de parar?
Vahalla mostrou o horizonte.
– Temos que dar onze voltas pelo deserto, passar onze vezes pelos mesmos lugares, repetir onze vezes as mesmas coisas. Foi tudo o que me disseram para fazer.
– Seu mestre disse?
– Não. O arcanjo Miguel.
– E que volta é esta?
– A décima.
A Valkíria encostou-se no ombro de Paulo, e ficou longo tempo em silêncio. Ele teve vontade de afagar seus cabelos, colocá-la no colo – como ela fizera com ele na mina abandonada. Era uma guerreira, e também precisava de repouso.
Ficou algum tempo na dúvida, mas desistiu. E os dois voltaram ao acampamento.
À medida que os dias passavam, Paulo começou a suspeitar que Vahalla estava ensinando tudo que ele precisava saber – só que à maneira de Took, sem mostrar diretamente o caminho. Passou então a observar tudo que as Valkírias faziam; podia descobrir uma pista, um ensinamento, uma nova prática. E, quando Vahalla chamou-o para ver o entardecer do deserto – ela agora fazia isto sempre –, resolveu tocar no assunto.
– Nada lhe proíbe que me ensine diretamente – disse. – Você não é uma mestra. Não é como Took, ou J., ou como eu mesmo, que conhecemos duas Tradições.
– Sou uma mestra, sim. Aprendi através da revelação. Está certo que não fiz cursos, não participei de covens*, nem me inscrevi em sociedades secretas. Mas sei muitas coisas que você não sabe, porque o arcanjo Miguel me ensinou.
– Por isso estou aqui. Para aprender.
Os dois estavam sentados na areia, recostados numa rocha. Vahalla pediu que Paulo abrisse as pernas.
– Preciso de carinho – disse ela. – Preciso muito de carinho.
Paulo abriu as pernas. Vahalla saiu de seu lugar, e deitou-se no meio delas, com a cabeça apoiada em seu colo. Ficaram um longo tempo em silêncio, olhando o horizonte. Foi Paulo quem falou primeiro. Não gostava do que ia dizer, mas era preciso.
– Vou partir em breve, você sabe.
Ficou aguardando a reação. Ela não disse nada.
– Preciso aprender a visão do anjo. Creio que você já está me ensinando, e eu não estou percebendo.
– Não. Meus ensinamentos são claros como o sol do deserto.
Paulo tocou nos cabelos ruivos que cobriam seu colo.
– Você tem uma bela mulher – disse Vahalla.
Paulo entendeu o comentário, e retirou as mãos.
Ao voltar para junto de Chris, aquela noite, comentou o que Vahalla dissera a seu respeito. Chris sorriu, e não disse nada.
Continuaram viajando juntos. Mesmo depois do comentário de Vahalla – sobre a clareza dos seus ensinamentos – Paulo continuava a prestar atenção a tudo que as Valkírias faziam. Mas a rotina não se alterava muito: viajar, falar nas praças, executar rituais que ele já conhecia, e seguir adiante. E namorar. Namoravam homens que encontravam no caminho. Geralmente eram viajantes solitários, montados em possantes motocicletas, com coragem suficiente para se aproximar do grupo. Quando isso acontecia, havia um acordo – não escrito – de que Vahalla teria o direito da primeira escolha. Se ela não se interessasse, qualquer outra podia se aproximar do recém-chegado. Os homens não sabiam disso. Tinham a sensação de que estavam com a mulher que tinham escolhido – embora a escolha já tivesse sido feita muito antes. Por elas. As Valkírias bebiam cerveja e falavam em Deus. Executavam rituais sagrados e namoravam nas rochas. Nas cidades maiores, iam para um lugar público representar a estranha peça de teatro – que envolvia algumas pessoas da platéia.
No final, pediam que colaborassem com algumas moedas. Vahalla nunca participava do espetáculo – mas dirigia o que estava acontecendo, e depois passava seu lenço entre os presentes. Sempre conseguia recolher dinheiro suficiente.
Toda tarde, antes que Vahalla viesse chamar Paulo para passear no deserto, ele e Chris praticavam a canalização, e conversavam com seus anjos. Embora o canal ainda não estivesse completamente aberto, sentiam a presença da proteção constante, do amor e da paz. Ouviam frases sem sentido, tinham algumas intuições, e muitas vezes a única sensação era de alegria – nada mais. Entretanto, sabiam que conversavam com anjos, e que os anjos estavam contentes.
Sim, os anjos estavam contentes porque tinham sido contatados de novo. Qualquer pessoa que resolvesse conversar com eles, descobriria que aquela não era a primeira vez. Já haviam conversado antes, na infância, quando apareciam sob a forma de “amigos ocultos”, companheiros de longas conversas e brincadeiras, afastando o mal e o perigo.
E toda criança conversava com seu anjo da guarda – até chegar o famoso dia em que os pais notavam que o filho estava falando com gente que “não existia”. Então, ficavam intrigados, culpavam o excesso de imaginação infantil, consultavam pedagogos e psicólogos, e chegavam à conclusão de que a criança devia acabar com aquele tipo de comportamento.
Os pais sempre insistiam em dizer aos filhos que os amigos ocultos não existiam – talvez porque esquecessem que também eles conversaram com anjos um dia. Ou, quem sabe, pensavam que viviam num mundo que não tinha mais lugar para anjos. Desencantados, os anjos voltavam à presença de Deus, sabendo que não podiam impor sua presença.
Mas um novo mundo estava começando. Os anjos sabiam onde estava a porta do Paraíso, e conduziriam para lá todos aqueles que acreditassem neles. Talvez nem precisassem acreditar – bastava que precisassem dos anjos, e eles retornavam com alegria.
Paulo passava as noites imaginando por que Vahalla se comportava daquela maneira –
adiando as coisas.
Chris sabia a resposta. E as Valkírias também sabiam – sem que ninguém no grupo tivesse feito qualquer comentário a respeito.
Chris esperava o bote. Mais cedo ou mais tarde aconteceria. Por isso a Valkíria não havia se livrado deles, não ensinara o resto do encontro com o anjo.
Certa tarde começaram a aparecer imensas montanhas no lado direito da estrada. Depois, o lado esquerdo também foi se enchendo de montanhas, de canyons, enquanto uma gigantesca planície de sal, brilhando muito, formava-se no meio.
Chegaram ao Vale da Morte.
As Valkírias acamparam perto de Furnace Creek – o único local, em muitos quilômetros de distância, onde se podia conseguir água. Chris e Paulo resolveram ficar com elas, porque o único hotel no Vale da Morte estava lotado.
Naquela noite, o grupo inteiro sentou-se em volta da fogueira, conversando sobre homens, cavalos e – pela primeira vez em muitos dias – anjos. Como faziam sempre antes de deitar, as Valkírias amarraram os lenços, seguraram o longo cordão formado, e repetiram uma vez mais o salmo que falava dos rios da Babilônia e das harpas penduradas nos salgueiros. Não podiam esquecer, nunca, que eram guerreiras. Terminado o ritual, o silêncio desceu sobre o acampamento, e todos foram dormir. Menos Vahalla.