Ela afastou-se um pouco do lugar, e ficou um longo tempo contemplando a lua no céu. Pediu ao arcanjo Miguel que continuasse a aparecer para ela, dando os conselhos certos e ajudando a manter sua mão firme.
“Tu venceste as batalhas com outros anjos”, rezou. “Me ensina a vencer. Que eu não disperse este rebanho de oito pessoas, para que um dia possamos ser milhares, milhões. Perdoai meus erros, e enchei meu coração de entusiasmo. Me dá forças para ser homem e mulher, dura e suave. Que minha palavra seja a tua lança.
Que o meu amor seja a tua balança.”
Fez o sinal-da-cruz e ficou quieta, escutando o uivo de um coiote ao longe. Estava sem sono, e começou a pensar um pouco em sua vida. Lembrou-se do tempo em que era apenas uma funcionária do Chase Manhattan Bank, em que sua vida se resumia ao marido e aos dois filhos.
– Mas vi meu anjo – falou para o deserto silencioso. – Ele apareceu coberto de luz, e me pediu para cumprir essa missão. Não me obrigou, não fez ameaças nem prometeu recompensas. Apenas pediu.
Largou tudo no dia seguinte e foi para o Mojave. Começou pregando sozinha, falando das portas abertas do Paraíso. O marido pediu divórcio, e conseguiu a guarda dos filhos. Não entendia direito por que estava fazendo aquilo, mas sempre que chorava por causa da dor e da solidão, o anjo contava histórias de outras mulheres que tinham aceito as mensagens de Deus; falava da Virgem Maria, de Santa Teresa, de Joana D’Arc. Dizia que tudo que o mundo precisava era de exemplos, de pessoas capazes de viver seus sonhos e lutar por suas idéias.
Ficou quase um ano vivendo perto de Las Vegas. Gastou logo o pouco dinheiro que conseguiu levar consigo, passou fome e dormiu ao relento. Até que um dia caiu em suas mãos uma poesia. Os versos contavam a história de uma santa, Maria Egipcíaca. Ela estava viajando para Jerusalém, e não tinha dinheiro para pagar a travessia de um rio. O barqueiro, olhando a bela mulher à sua frente, disse-lhe que, embora não dispusesse de dinheiro, tinha o seu corpo. Maria Egipcíaca entregou-se então ao barqueiro. Quando chegou a Jerusalém, um anjo apareceu e abençoou-a por seu gesto. Depois de sua morte, foi canonizada pela Igreja, apesar de hoje em dia quase ninguém se lembrar. Vahalla interpretou a história como um sinal. Pregava o nome de Deus durante o dia, e duas vezes por semana ia aos cassinos, arranjava alguns namorados ricos, e conseguia dinheiro. Nunca perguntou ao seu anjo se estava agindo certo – e ele tampouco disse nada. Aos poucos, conduzidas pelas mãos invisíveis de outros anjos, suas companheiras começaram a chegar.
– Falta apenas uma volta – disse de novo, em voz alta, para o deserto silencioso. – Falta apenas uma volta para que a missão seja cumprida, e eu possa voltar ao mundo. Não sei o que me espera, mas quero voltar. Preciso de amor, de carinho, preciso de um homem que me proteja na Terra, da mesma maneira que meu anjo me protege no céu. Cumpri minha parte; não me arrependo, mas foi muito difícil. Fez de novo o sinal-da-cruz, e retornou ao acampamento.
Ao voltar, reparou que o casal de brasileiros continuava sentado em frente à fogueira, olhando as chamas.
– Quantos dias faltam para completar quarenta? – perguntou a ele.
– Onze.
– Então, amanhã, às dez horas da noite, no Canyon de Ouro, eu o farei aceitar o perdão. O
Ritual Que Derruba os Rituais.
Paulo ficou pasmo. Tinha razão! A resposta estava o tempo todo debaixo do seu nariz!
– De que maneira? – perguntou.
– Pelo ódio – respondeu Vahalla.
– Está bem – disse, procurando disfarçar a surpresa. Mas Vahalla sabia que Paulo jamais utilizara o ódio no Ritual Que Derruba os Rituais.
Deixou o casal e foi até o lugar onde Rotha estava dormindo. Passou carinhosamente a mão em seus cabelos, até que a menina acordasse – talvez estivesse fazendo contato com os anjos que aparecem em sonhos, e Vahalla não queria interromper abruptamente a conversa. Rotha finalmente abriu os olhos.
– Amanhã você aprenderá a aceitar o perdão – disse Vahalla. – E, em breve, também poderá
ver seu anjo.
– Mas já sou uma Valkíria.
– Claro. E, mesmo que não consiga ver seu anjo, continuará a ser uma Valkíria. Rotha sorriu. Tinha 23 anos, e estava orgulhosa de caminhar pelo deserto com Vahalla.
– Não use a roupa de couro amanhã, do momento do nascer do sol até acabar o Ritual Que Derruba os Rituais.
Abraçou-a com todo carinho.
– Agora pode voltar a dormir – disse.
Paulo e Chris continuaram olhando o fogo durante quase meia hora. Depois, colocaram algumas roupas como travesseiro, e se prepararam para dormir. Pensavam em comprar sacos de dormir em toda cidade grande por onde passavam, mas não tinham paciência de entrar em lojas, fazer compras. Além do mais, viviam na esperança de encontrar um hotel em cada canto. Por isso, quando precisavam acampar com as Valkírias, terminavam sendo obrigados a dormir dentro do carro ou perto da fogueira. O cabelo dos dois já
havia sido chamuscado várias vezes pelas fagulhas – embora nada de mais grave tivesse acontecido até o momento.
– O que ela quis dizer? – perguntou Chris quando já estavam deitados.
– Nada importante. – Ele estava com sono, e tinha bebido um pouco. Mas Chris insistiu. Precisava de uma resposta.
– Tudo na vida é ritual – disse Paulo. – Para os bruxos e para os que nunca ouviram falar em bruxaria. Tanto uns como outros tentam sempre executar, com perfeição, seus rituais. Que os bruxos tivessem rituais, Chris entendia. E que a vida comum também tivesse –
casamentos, batizados, formaturas –, ela também entendia.
– Não, não estou falando dessas coisas óbvias – prosseguiu impaciente, queria dormir, mas ela fingiu não ouvir a agressão. – Falo que tudo é ritual. Assim como uma missa é um grande ritual, composto de várias partes, o dia da vida de qualquer ser humano também o é.
“Um ritual cuidadosamente elaborado, que ele procura executar com precisão porque tem medo de – caso quebre qualquer parte – tudo vir abaixo. O nome deste ritual é ROTINA.”
Resolveu sentar-se. Estava tonto por causa da cerveja, e, se continuasse deitado, não conseguiria terminar a explicação.
– Enquanto somos jovens, nada é muito grave. Mas lentamente esse conjunto de rituais diários vai se solidificando, e passa a nos comandar. Uma vez que as coisas comecem a andar mais ou menos como imaginamos, não ousamos mais quebrar o ritual e correr riscos. Fingimos reclamar, mas nos satisfazemos com o fato de um dia ser igual ao outro. Pelo menos não existe o perigo inesperado.
“Desta maneira conseguimos evitar qualquer crescimento interior ou exterior, exceto aqueles já previstos pelo rituaclass="underline" tantos filhos, tais promoções, tais conquistas financeiras.”
“Quando o ritual se consolida, o homem passa a ser seu escravo.”
– Acontece também com os bruxos e magos?
– Claro. Usam o ritual para o contato com o mundo invisível, para destruir a segunda mente e entrar no Extraordinário. Mas, também para nós, o terreno conquistado torna-se familiar. É preciso partir para novas terras. Entretanto, qualquer mago, qualquer bruxa tem medo de mudar de ritual. Medo do desconhecido, ou medo de que novos rituais não funcionem – mas é medo irracional, fortíssimo, que jamais desaparece sem uma ajuda.
– E o que é o Ritual Que Derruba os Rituais?
– Como o mago não consegue mudar seus rituais, a Tradição resolve mudar o mago. É uma espécie de Teatro Sagrado, em que ele precisa viver um novo personagem. Ele deitou-se de novo, virou para o lado, e fingiu dormir. Podia ser que ela pedisse mais explicações – e quisesse saber por que a Valkíria dissera “ódio”. Nunca, no teatro sagrado, os sentimentos baixos eram invocados. Ao contrário, pessoas que participavam dele procuravam trabalhar com o Bem, viver personagens fortes, iluminados. Assim, se convenciam de que eram melhores do que pensavam, e – quando acreditavam nisto – suas vidas mudavam. Trabalhar os sentimentos baixos significaria a mesma coisa. Ele terminaria se convencendo de que era pior do que imaginava.