– Me fale sobre essas leis – respondeu ela. – E eu contarei o segredo do anjo. A prisioneira fazia uma troca. Podia torturá-la, destruí-la. Estava ali, caída aos seus pés – e, mesmo assim, propunha uma troca.
“É uma mulher estranha”, pensou. Talvez não confessasse com tortura. Era melhor fazer a troca. Falaria sobre as cinco leis da vitória, porque ela jamais sairia viva dali.
– A Lei Moraclass="underline" é preciso lutar do lado certo, e por isso vencemos. A Lei do Tempo: uma guerra na chuva é diferente de uma guerra ao sol, uma batalha no inverno é diferente de uma batalha no verão. Podia enganá-la agora. Mas não conseguia inventar, em tão pouco tempo, leis falsas. A mulher notaria sua hesitação.
– A Lei do Espaço – continuou, falando a verdade. – Uma guerra no desfiladeiro é diferente de uma guerra no campo. A Lei da Escolha: o guerreiro sabe escolher quem lhe dá conselhos, e quem vai ficar ao seu lado durante o combate. Um chefe não pode cercar-se de covardes ou traidores. Ficou um momento pensando se devia ou não continuar. Mas já havia falado de quatro leis.
– A Lei da Estratégia – disse, afinal. – A maneira como se planeja a luta. Isto era tudo. Os olhos da menina brilhavam.
– Agora fale-me dos anjos.
Ela ficou olhando para ele sem dizer nada. Havia conseguido a fórmula, embora fosse tarde demais. Aqueles guerreiros valentes jamais perdiam uma batalha – e a lenda dizia que usavam cinco leis de vitória. Agora ela já sabia.
Mesmo que não adiantasse para nada, já sabia. Podia morrer em paz. Merecia o castigo que ia receber.
– Fale-me dos anjos – repetiu o guerreiro.
– Não, não falarei dos anjos.
Os olhos do guerreiro mudaram, e ela ficou contente. Ele não teria piedade. Este era seu medo – que o guerreiro se deixasse levar pela Lei Moral, e poupasse sua vida. Não merecia isso. Tinha culpa
– dezenas, centenas de culpas acumuladas durante toda sua curta vida. Decepcionara seus pais, decepcionara os homens que haviam se aproximado dela. Decepcionara os guerreiros que lutavam ao seu lado. Tinha se deixado prender – era fraca. Merecia o castigo.
– Ódio! – escutaram uma voz distante de mulher dizer. – O sentido do ritual é o ódio!
– Houve uma troca – repetiu o guerreiro, e desta vez sua voz era cortante como aço. –
Cumpri a minha parte.
– Você não me deixará sair viva – ela disse. – Mas, pelo menos, consegui o que queria. Mesmo que não sirva para nada.
“Ódio!” A distante voz de mulher já fazia efeito. Ele deixava que os seus piores sentimentos surgissem. O ódio foi crescendo no coração do guerreiro.
– Você irá sofrer – disse – os piores tormentos que alguém já sofreu.
– Sofrerei.
“Mereço isto”, pensava. Merecia a dor, a punição, a morte. Desde criança havia se recusado a lutar – acreditava que não era capaz, aceitava tudo dos outros, sofria em silêncio as injustiças de que era vítima. Queria que todos entendessem como era boa, um coração sensível capaz de ajudar todo mundo. Queria que gostassem dela a qualquer preço. Deus lhe dera uma bela vida, e ela não foi capaz de aproveitar. Em vez disso, mendigou o amor dos outros, viveu a vida que os outros queriam que ela vivesse, tudo para mostrar que tinha bondade em seu coração, e que era capaz de agradar a todos. Tinha sido injusta com Deus, jogou fora sua vida. Agora precisava de um carrasco que a mandasse rápido para o inferno.
O guerreiro sentiu o chicote ganhando vida própria em suas mãos. Por um minuto, seus olhos tornaram a se cruzar com os da prisioneira.
Esperou que ela mudasse de idéia, pedisse perdão. Mas, em vez disso, a prisioneira contraiu seu corpo esperando o golpe.
A Lei Moral. De repente tudo havia desaparecido, menos a raiva de ter sido traído por uma prisioneira. O ódio vinha em ondas, e ele estava descobrindo o quanto era capaz de ser cruel. Sempre fora enganado, sempre deixara que seu coração fraquejasse nos momentos em que precisava executar a justiça. Sempre perdoara – não porque fosse uma pessoa boa, mas porque era um covarde, tinha medo de não conseguir chegar até o fim.
Vahalla olhou para Chris. Chris olhou para Vahalla. A lua não permitia que vissem claramente os olhos uma da outra, e isto era bom.
As duas tinham medo de mostrar o que estavam sentindo.
– Pelo amor de Deus! – a mulher gritou mais uma vez, antes que o golpe descesse. O guerreiro parou o chicote no alto.
Mas o inimigo havia chegado.
– Chega – disse Vahalla. – É o suficiente.
Os olhos de Paulo estavam vidrados. Ele segurou Vahalla pelos ombros.
– Tenho este ódio! – gritava. – Não estou representando! Soltei os demônios que não conhecia!
Vahalla retirou o chicote de suas mãos, e foi ver se Rotha estava ferida. A menina chorava com o rosto entre os joelhos.
– Tudo era verdade – disse, abraçando-se a Vahalla. – Eu provoquei, eu o usei para que me castigasse. Queria que ele me destruísse, que acabasse comigo. Meus pais me culpam, meus irmãos me culpam, só tenho feito coisas erradas na vida.
– Vá colocar outra blusa – disse Vahalla.
Ela levantou-se, ajeitou a blusa rasgada.
– Quero continuar assim – disse.
Vahalla hesitou por um momento, mas não disse nada. Em vez disso, caminhou para a parede do canyon, e começou a subir. Quando chegou lá em cima, ao lado de três Valkírias, fez um sinal para que eles também subissem.
Chris, Rotha e Paulo escalaram a parede em silêncio; a lua iluminava o caminho, as pedras tinham muitas rachaduras, não havia qualquer dificuldade especial. Lá no alto, a vista era como se estivessem numa enorme planície, cheia de fendas.
Vahalla pediu que a menina e Paulo se aproximassem um do outro, e ficassem frente a frente, encostados.
– Machuquei? – perguntou a Rotha. Estava horrorizado consigo mesmo. Rotha fez “não” com a cabeça. Tinha vergonha – jamais conseguiria ser como uma daquelas mulheres ao seu lado. Era fraca.
Vahalla pegou os lenços de duas Valkírias, uniu-os – e passou pela cintura do homem e da mulher, amarrando-os juntos. De onde estava, Chris podia ver a lua formando um halo em volta dos dois. Era uma cena linda – se não fosse por tudo que tinha acontecido, se aquele homem e aquela mulher não estivessem tão distantes e tão próximos um do outro.
– Sou indigna de ver meu anjo – disse a Valkíria. – Sou fraca, meu coração se enche de vergonha.
– Sou indigno de ver meu anjo – disse Paulo, para que todos escutassem. – Tenho ódio em meu coração.
– Meu coração amou várias mulheres. E afastou o amor dos homens – disse Rotha.
– Alimentei ódios durante anos, e me vinguei quando nada daquilo tinha mais importância –
continuou Paulo. – Sempre fui perdoado por meus amigos, e jamais soube perdoá-los.
Vahalla virou-se em direção à lua.
– Estamos aqui, arcanjo. Seja feita a vontade do Senhor. Nossa herança é o ódio e o medo, a humilhação e a vergonha. Seja feita a vontade do Senhor.
“Por que não bastou fechar as portas do Paraíso? Precisava também fazer com que carregássemos o inferno na alma? Mas se esta é a vontade do Senhor, saiba que toda a humanidade a vem cumprindo através das gerações.”
(Vahalla caminha em torno dos dois)
PREFÁCIO E SAUDAÇÃO
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, para sempre seja louvado. Falam Contigo os guerreiros da culpa.
Aqueles que sempre usaram as melhores armas que possuíam – contra si mesmos. Os que se julgam indignos das bênçãos. Os que acham que não foram feitos para a felicidade. Os que se sentem piores que os outros.
Falam Contigo os que chegaram às portas da libertação, olharam o Paraíso, e disseram para si mesmos: “Não devemos entrar; não merecemos.”
Falam Contigo aqueles que experimentaram um dia o julgamento de seu próximo: e acharam que a maioria tinha razão.