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Falam Contigo aqueles que julgaram e condenaram a si mesmos.

(Uma das Valkírias entrega o chicote para Vahalla. Ela levanta o chicote para o céu.)

PRIMEIRO ELEMENTO: O AR

Aqui está o chicote. Se somos assim, castiga-nos.

Castiga-nos porque somos diferentes. Porque somos aqueles que ousaram sonhar, e acreditar em coisas em que ninguém acredita mais.

Castiga-nos porque desafiamos o que existe, o que todos aceitam, o que a maioria não quer mudar.

Castiga-nos porque falamos de Fé, e nos sentimos sem esperança. Falamos de Amor, e não recebemos nem o carinho nem o conforto que julgamos merecer. Falamos de liberdade e estamos presos às nossas culpas.

E no entanto, Senhor, mesmo que eu levantasse este chicote tão alto, a ponto de tocar as estrelas, eu não encontraria Tua mão.

Porque ela está sobre nossas cabeças. E ela nos afaga e nos diz: “Não sofram mais. Eu já

sofri o suficiente.”

“Também sonhei, acreditei num mundo novo. Falei de Amor, e ao mesmo tempo pedi ao Pai para afastar meu cálice. Desafiei o que existia, e que a maioria não desejava mudar. Julguei ter agido errado, quando fiz meu primeiro milagre: transformar água em vinho só para animar uma festa. Senti o olhar duro do meu semelhante, gritei ‘Pai, Pai, por que me abandonaste?’”

Eles já usaram em mim o chicote. Vocês não precisam sofrer mais.”

(Vahalla larga o chicote no chão, e espalha areia ao vento.)

SEGUNDO ELEMENTO: A TERRA

Pertencemos a este mundo, Senhor. E ele está povoado por nossos temores. Escreveremos nossas culpas na areia, e o vento do deserto se encarregará de dissipá-las. Mantém nossa mão firme, e faz com que não desistamos de lutar, mesmo nos sentindo indignos da batalha.

Usa nossa vida, alimenta nossos sonhos. Se somos feitos da Terra, a Terra também é feita de nós. Tudo é uma coisa só.

Nos instrui e nos usa. Somos teus para sempre.

A Lei foi reduzida a um mandamento: “Ama o próximo como a ti mesmo.”

Se amarmos, o mundo se transforma. A luz do Amor dissipa as trevas da culpa. Nos mantém firmes no Amor. Faz com que aceitemos o Amor de Deus por nós. Nos mostra nosso amor por nós mesmos.

Nos obriga a procurar o amor do próximo. Mesmo com medo da rejeição, dos olhares severos, da dureza do coração de alguns – faz com que jamais desistamos de procurar o Amor.

(Uma das Valkírias estende uma tocha para Vahalla. Ela pega seu isqueiro e acende o fogo, e levanta a tocha em direção ao céu.)

TERCEIRO ELEMENTO: O FOGO

Tu disseste, Senhor: “Vim atear fogo à Terra. E vigio para que arda.”

Que o fogo do amor arda em nossos corações.

Que o fogo da transformação arda em nossos gestos.

Que o fogo da purificação queime nossas culpas.

Que o fogo da justiça conduza nossos passos.

Que o fogo da sabedoria ilumine nosso caminho.

Que o fogo que espalhaste sobre a Terra não se apague jamais. Ele está de volta, e nós o carregamos conosco.

As gerações anteriores passavam seus pecados para as gerações seguintes. E assim foi, até

os nossos pais.

Agora, entretanto, passaremos adiante a tocha do Teu fogo.

Somos guerreiros e guerreiras da Luz, esta luz que carregamos com orgulho. O fogo que, ao ser aceso pela primeira vez, nos mostrou nossas faltas e nossa culpa. Nós ficamos surpresos, assustados, e nos sentimos incapazes.

Mas era o fogo do Amor. E ele queimou o que havia de mau em nós, quando o aceitamos. Ele nos mostrou que não somos nem piores nem melhores que aqueles que nos olhavam com severidade.

E por isso aceitamos o perdão. Não há mais culpa, podemos voltar ao Paraíso. E

conduziremos o fogo que arderá na Terra.

(Vahalla prende a tocha em uma rocha. Então, abre seu cantil e derrama um pouco de água na cabeça de Paulo e Rotha.)

QUARTO ELEMENTO: A ÁGUA

Tu disseste: “Quem beber desta água jamais terá sede.”

Pois bem, estamos bebendo desta água. Lavamos nossas culpas, por amor da Transformação que vai sacudir a Terra.

Escutaremos o que os anjos dizem, seremos mensageiros e mensageiras de suas palavras. Lutaremos com as melhores armas e os cavalos mais velozes.

A porta está aberta. Somos dignos de entrar.

“Senhor Jesus Cristo, que dissestes a vossos apóstolos, ‘minha paz vos deixo, minha paz vos dou’, não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima vossa assembléia.”

Chris conhecia aquele trecho. Era semelhante ao usado no ritual católico.

– Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós – concluiu Vahalla, desamarrando o lenço que unia os dois.

– Estão livres.

Vahalla então aproximou-se de Paulo.

“O bote”, pensou Chris. “O bote da serpente virá agora. O pagamento é ele. Ela está

apaixonada. Se a Valkíria disser o preço, ele vai aceitar, e terá prazer. Então não vou poder dizer nada –

porque sou uma mulher comum, não conheço as leis do mundo dos anjos. Nenhum deles vê que já morri muitas vezes neste deserto, e nasci outras tantas. Não percebem que converso com o anjo, e que minha alma cresceu. Estão acostumados comigo, sabem o que penso.”

“Eu o amo. Ela está apenas apaixonada.”

– AGORA SOU EU E VOCÊ, VALKÍRIA!! O Ritual Que Derruba os Rituais!

O grito de Chris ecoou pelo deserto sinistro, banhado pela luz da lua. Vahalla já esperava este grito. Já havia vencido a culpa, e sabia que o que estava querendo não era um crime. Apenas um capricho. Merecia cultivar seus caprichos – seu anjo havia lhe ensinado que estas coisas não afastavam ninguém de Deus e da tarefa sagrada que cada um tem que realizar na vida. Lembrou-se da primeira vez que vira Chris, numa lanchonete. Um arrepio tinha percorrido seu corpo, e estranhas intuições – que não conseguia compreender – haviam se apossado dela. “O mesmo deve ter se passado com ela”, pensou.

Paulo? Havia cumprido sua missão com ele. E, sem que ele soubesse, o preço que cobrou foi alto – enquanto caminhavam pelo deserto, aprendera vários rituais que J. usava apenas com seus discípulos. Ele havia contado tudo.

Também o desejava como homem. Não pelo que era – mas pelo que sabia. Um capricho, e seu anjo perdoava os caprichos.

Olhou de novo para Chris.

“Estou na décima volta. Também preciso mudar. Esta mulher é um instrumento dos anjos.”

– O Ritual Que Derruba os Rituais – respondeu a Valkíria. – Que Deus envie os personagens!

Aceitava o desafio. Seu momento de crescer havia chegado.

As duas começaram a andar em torno de um círculo imaginário, como faziam os velhos cowboys do oeste antes do duelo. Não se ouvia um ruído – era como se o tempo tivesse parado. Quase todo mundo ali entendia o que estava acontecendo, porque todas eram mulheres, acostumadas a lutar pelo amor. E fariam isso até às derradeiras conseqüências, usando truques, artifícios –

fariam isso por causa daquela espécie estranha chamada Homem, que justificava suas vidas e seus sonhos. O cenário mudava, o personagem de Chris começava a aparecer. As roupas de couro iam surgindo, o lenço amarrado na cabeça, a medalha do arcanjo Miguel entre os seios. Ela se vestia com o personagem da força, da mulher que admirava e que gostaria de ser. Ela se vestia de Vahalla. Chris fez um gesto com a cabeça, e as duas pararam. Vahalla havia reconhecido o personagem da outra – estava diante de um espelho imaginário.

Podia se olhar. Sabia de cor a arte da guerra, e esquecera as lições do amor. Conhecia as cinco leis da vitória, dormia com todos os homens que tivesse vontade, mas havia esquecido a arte do amor. Olhou para si mesma refletida na outra; tinha poder suficiente para derrotá-la. Mas seu personagem estava aparecendo, tomando forma, e era um personagem que, embora também repleto de poder, não estava acostumado com aquele tipo de luta.

O personagem surgia – estava vendo com tanta claridade! Transformava-se em uma mulher apaixonada, que seguia junto com o seu homem, carregando sua espada quando necessário e o protegendo de todos os perigos. Era uma mulher forte, embora parecesse fraca. Era alguém que trilhava o caminho do amor como a única estrada possível para chegar até a Sabedoria, um caminho onde os mistérios se revelavam através da Entrega e do Perdão.

Vahalla se vestia de Chris.

E Chris se olhava, refletida na outra.

Começou a andar lentamente em direção à beira do despenhadeiro. Vahalla imitou-a; as duas se aproximaram do abismo. Uma queda dali podia ser mortal, ou causar sérios danos; mas elas eram mulheres – as mulheres não conhecem limites. Chris parou na beirada, dando tempo de a outra se aproximar e fazer o mesmo.

O chão estava dez metros abaixo, e a lua, milhares de quilômetros acima. Entre a lua e o chão, duas mulheres se enfrentavam.

– Ele é meu homem. Não o toque só por capricho. Você não o ama – disse Chris. Vahalla ficou em silêncio.

– Vou dar mais um passo – continuou. – Sobreviverei. Sou uma mulher de coragem.

– Irei com você – respondeu Vahalla.

– Não faça isto. Você agora conhece o amor. É um mundo imenso, terá que usar toda a sua vida para entendê-lo.

– Não farei, se você não fizer. Você agora conhece sua força. Seu horizonte passou a ter montanhas, vales, desertos. Sua alma é grande, e crescerá cada vez mais. Você descobriu sua coragem, e isto basta.

– Basta, se o que te ensinei servir como o preço que ia cobrar. Houve um longo silêncio. De repente, a Valkíria caminhou até Chris. E beijou-a.

– Aceito o preço – disse. – Obrigada por ter me ensinado.

Chris retirou o relógio de seu pulso. Era tudo que tinha para oferecer naquele momento.

– Obrigada por ter me ensinado – disse. – Conheço agora minha força. Jamais conheceria se não tivesse vivido uma estranha, bonita e poderosa mulher.

Com todo carinho, colocou o relógio no pulso de Vahalla.