– Eles têm asas?
– Ainda não vi um anjo – ele respondeu. – Mas também quis saber isto. E perguntei a J.
“Que bom”, pensou ela. Não era a única a querer saber coisas simples a respeito de anjos.
– J. me disse que eles tomam a forma que a gente imaginar. Porque são o pensamento vivo de Deus, e precisam se adaptar à nossa sabedoria e ao nosso entendimento. Sabem que, se não agirem desta maneira, não conseguimos vê-los.
Paulo fechou os olhos.
– Imagine seu anjo, e sentirá sua presença neste momento – concluiu. Ficaram em silêncio, deitados no deserto. Não podiam ouvir qualquer ruído, e Chris começou a sentir-se de novo no mesmo filme de sua adolescência, onde representava para platéias invisíveis. Quanto mais se concentrava, mais tinha certeza de que, à sua volta, existia uma presença forte, amiga e generosa. Começou a imaginar seu anjo, vestiu-o exatamente como via nas gravuras da infância: roupa azul, cabelos dourados e imensas asas brancas.
Paulo também imaginava seu anjo. Já mergulhara muitas vezes no mundo invisível que o cercava, e aquilo não era novidade para ele. Mas agora, desde que J. lhe dera a tarefa, sentia que seu anjo estava muito mais presente – como se os anjos se fizessem notar apenas para aqueles que acreditavam na sua existência. Embora, a despeito do que o homem acreditasse ou não, eles sempre estivessem ali – mensageiros da vida, da morte, do inferno e do paraíso.
Vestiu um longo manto bordado de ouro no seu anjo, e também colocou asas.
O guarda que estava tomando o café da manhã na mesa ao lado virou-se para eles.
– Não tornem a ir para o deserto de noite – disse.
“Realmente esta é uma cidade muito pequena”, pensou Chris. “Sabem de tudo.”
– A noite é a hora mais perigosa – continuou o guarda. – Saem os coiotes, as cobras. Eles não suportam o calor do dia, e vão caçar quando o sol se põe.
– Estávamos vendo nossos anjos – respondeu Paulo.
O guarda achou que aquele homem não falava inglês direito. Sua frase não fazia sentido:
“anjos”! Talvez tentasse dizer outra coisa.
Os dois tomaram o café às pressas. O “contato” havia marcado o encontro para bem cedinho.
Chris ficou surpresa quando viu Took pela primeira vez – era um garoto, não devia ter mais de vinte anos. Morava num trailer estacionado em pleno deserto, a alguns quilômetros de Borrego Springs.
– Um mestre da “Conspiração”? – ela disse baixo para Paulo depois que o rapaz entrou para trazer um chá gelado.
Mas o rapaz voltou antes que ele pudesse responder. Sentaram-se debaixo de uma lona estendida na lateral do veículo, que servia de “varanda”.
Falaram dos rituais templários, da reencarnação, da magia sufi, dos caminhos da Igreja Católica na América Latina. O menino parecia ter uma vasta cultura, e era engraçado ver a conversa dos dois
– pareciam aficionados conversando sobre algum esporte muito popular, defendendo certas táticas e atacando outras.
Falaram de tudo – menos de anjos.
O sol começou a esquentar, tomaram mais chá enquanto Took, sempre risonho, contava maravilhas sobre a vida no deserto – embora, advertiu, os principiantes jamais devessem sair durante a noite (o guarda tinha razão). Deviam, também, evitar as horas mais quentes do dia.
– Um deserto é feito de manhãs e tardes – contou. – O resto é arriscado. Chris acompanhou a conversa durante longo tempo. Mas acordara muito cedo, a claridade do sol ficava cada vez mais forte, e ela resolveu fechar um pouco os olhos e tirar um cochilo.
Quando acordou, o som das vozes não vinha mais do mesmo lugar. Os dois homens estavam na parte de trás do trailer.
– Por que você trouxe a mulher? – escutou Took dizer baixinho.
– Porque vinha para o deserto – respondeu Paulo, também baixinho. Took riu.
– Está perdendo o melhor do deserto. A solidão.
(“Que garoto metido”, pensou Chris.)
– Fale-me delas – disse Paulo.
– Elas o ajudarão a ver seu anjo – continuou o americano.
(Outras mulheres. Sempre assim, outras mulheres!)
– Foram elas que me ensinaram. Mas as Valkírias são ciumentas e duras. Tentam seguir as leis dos anjos – e, você sabe, no reino dos anjos não existe nem o Bem e nem o Mal.
– Não da maneira como entendemos.
Era a voz de Paulo. Chris não sabia o que “Valkírias” significava. Lembrava-se vagamente de ter escutado este nome como título de uma música.
– Foi difícil para você ver o anjo?
– A palavra certa é “sofrido”. Aconteceu de repente, na época em que as Valkírias passaram por aqui. Resolvi aprender o processo apenas para me distrair, porque, naquela altura, ainda não entendia a língua do deserto, e achava tudo muito chato.
“Meu anjo apareceu naquela terceira montanha. Eu estava lá distraído, ouvindo música num walkman. Naquela época eu dominava por completo a segunda mente. Agora ando mais distraído.”
(Que diabos seria “segunda mente”?)
– Seu pai lhe ensinara algo?
– Não. E, quando perguntei a ele por que não me falara de anjos, ele respondeu que certas coisas são tão importantes que a gente tem que descobrir sozinho. Ficaram um instante em silêncio.
– Se você encontrá-las, existe algo que vai facilitar seu contato – disse o rapaz.
– O quê?
Took deu uma boa gargalhada.
– Você saberá. Mas seria muito melhor se tivesse vindo sem sua mulher.
– Seu anjo tinha asas? – perguntou Paulo.
Antes que Took pudesse responder, Chris já havia se levantado da cadeira de alumínio, dando a volta no trailer, e se colocado na frente dos dois.
– Por que ele insiste nesta história de que você estaria melhor sozinho? – disse, em português. – Quer que eu vá embora?
Took continuou a conversar com Paulo, sem prestar a menor atenção ao que Chris dizia. Ela esperou para ver se Paulo respondia – mas parecia ter ficado invisível.
– Me dá a chave do carro – disse, quando sua paciência esgotou.
– O que sua mulher deseja? – Took perguntou finalmente.
– Está querendo saber o que é “segunda mente”.
(Danado! Nove anos juntos, e o outro já passa a saber até o momento em que acordamos!) O rapaz levantou-se.
– Meu nome é Took (recebido, em inglês) – disse, olhando para ela. – Não é Gave (dado). Mas você é uma mulher bonita.
O elogio teve efeito imediato. O menino parecia saber tratar as mulheres, apesar de sua pouca idade.
– Sente-se, feche os olhos, e lhe mostro – disse.
– Não vim para o deserto aprender magia, ou conversar com anjos – disse Chris. – Vim acompanhar meu marido.
– Sente-se – insistiu Took, rindo.
Ela olhou uma fração de segundo para Paulo. Não conseguiu descobrir o que ele achava da proposta de Took.
“Respeito o mundo deles, mas não é o meu”, pensou. Embora todos os amigos acreditassem que ela mergulhara no estilo de vida do marido, o fato é que conversavam muito pouco a respeito. Costumava acompanhá-lo a determinados lugares, carregara certa vez a sua espada em uma cerimônia, conhecia o Caminho de Santiago,* e tinha – por força das circunstâncias – aprendido um bocado sobre magia sexual!
Mas isto era tudo.
J. jamais fizera tal proposta: ensinar algo.
– Que faço? – perguntou para Paulo.
– O que você decidir – ele respondeu.
“Eu o amo”, pensou. Aprender algo sobre seu mundo, com certeza, a aproximaria mais dele. Dirigiu-se à cadeira de alumínio, sentou-se e fechou os olhos.
– Em que está pensando? – perguntou Took.
– No que vocês falavam. Em Paulo viajando sozinho. Em segunda mente. Se o seu anjo tinha asas. E por que isto está me interessando tanto. Afinal de contas, acho que nunca conversei sobre anjos.
– Não, não. Quero saber se existe outra coisa acontecendo em seu pensamento. Algo que você não controla.