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– Vamos descansar – disse.

Não parecia mais irritado. Devia estar com preguiça também. Igual a ela. Não havia sombra. Mas ela também precisava descansar.

Sentaram-se no chão quente. O fato de estarem nus, o fato de a areia queimar a pele, não fez muita diferença. Precisavam parar. Um pouco.

Ela conseguiu lembrar-se sobre o que estavam conversando: horizontes. Reparou que agora, mesmo que não quisesse, tinha a sensação de alma crescida. E, além do mais, a segunda mente parara de funcionar por completo. Não pensava em músicas, ou em coisas repetitivas, não pensava nem mesmo se alguém os olhava caminhando nus pelo deserto.

Tudo estava perdendo a importância; sentia-se relaxada, despreocupada, livre. Ficaram alguns minutos em silêncio. Estava quente, mas o sol também não incomodava. Se incomodasse muito, tinham bastante água no cantil.

Ele levantou-se primeiro.

– Acho melhor andar. Falta pouco para o carro. A gente descansa lá, no ar condicionado. Ela estava com sono. Queria dormir só um pouquinho. Mesmo assim, levantou-se. Andaram um pouco mais. O carro agora estava bastante perto. Não mais que dez minutos de caminhada.

– Já que estamos tão perto, por que não dormimos? Cinco minutos. Dormir cinco minutos? Por que ele dizia isto? Será que adivinhara seu pensamento? E

também estava com sono?

Não havia qualquer mal em cochilar cinco minutos. Ficariam bronzeados, ela pensou. Como se estivessem na praia.

Sentaram-se de novo. Já estavam andando há mais de uma hora, excluindo-se as paradas. Que mal havia em cochilar cinco minutos?

Escutaram o ruído de um carro. Meia hora atrás ela teria dado um salto e vestido rapidamente a roupa.

Mas agora, bem, aquilo não tinha a menor importância. Só olha quem quer. Não precisava dar satisfações a ninguém.

Queria dormir, só isto.

Os dois viram uma caminhonete aparecer na estrada, passar pelo carro deles, e parar mais adiante. Um homem desceu, e se aproximou do veículo. Olhou para dentro, e começou a andar em torno do carro, examinando tudo.

“Pode ser um ladrão”, pensou Paulo. Imaginou o sujeito roubando o carro, e deixando os dois naquela imensidão, sem ter como voltar. A chave estava na ignição – ele não havia carregado consigo, com medo de perdê-la.

Mas estava no interior dos Estados Unidos. Em Nova York, talvez, mas ali – ali não roubavam carros.

Chris olhava o deserto – como estava dourado! Uma sensação agradável, de descanso, começava a tomar conta de todo seu corpo. O sol não incomodava – as pessoas não sabiam como o deserto podia ser belo durante o dia!

Dourado! Diferente do deserto cor-de-rosa dos finais de tarde!

O sujeito parou de olhar o carro, e colocou a mão sobre os olhos, como uma viseira. Estava procurando os dois.

Ela estava nua… e ele acabaria vendo. Mas que importância tinha isso? Paulo parecia não estar muito preocupado, tampouco.

O homem agora andava em direção a eles. A sensação de leveza e euforia aumentava cada vez mais, embora a preguiça fizesse com que não se movessem do lugar. O deserto era dourado, e lindo. E

tudo estava tranqüilo, em paz – os anjos, sim, os anjos se mostrariam daqui a pouco! Era para isso que tinham vindo ao deserto – para conversar com anjos!

Estava nua, e não tinha vergonha. Era uma mulher livre.

O homem parou em pé, na frente dos dois. Falava uma língua diferente. Eles não entendiam o que ele estava dizendo.

Mas Paulo fez um esforço; e viu que o homem falava inglês. Afinal de contas, estavam nos Estados Unidos.

– Venham comigo – ele disse.

– Vamos descansar – respondeu Paulo. – Cinco minutos.

O homem pegou a bolsa no chão, e abriu.

– Vista isto – disse para Chris, estendendo a roupa.

Ela levantou-se com muito esforço, e obedeceu. Estava com preguiça de discutir. Ele mandou que Paulo se vestisse. Paulo também estava com preguiça de discutir. O homem olhou os cantis cheios de água, abriu um deles, encheu a pequena tampa, e mandou que bebessem. Não tinham sede. Mas fizeram o que o homem mandava. Estavam muito calmos, em completa paz com o mundo – e sem qualquer desejo de discutir.

Fariam qualquer coisa, obedeceriam qualquer ordem, desde que ele os deixasse em paz.

– Vamos andar – disse o homem.

Já não conseguiam pensar muito – apenas olhar o deserto. Fariam qualquer coisa, desde que aquele estranho os deixasse dormir logo.

O homem seguiu com eles até o carro, pediu que entrassem, e ligou o motor. “Onde estará

nos levando?”, pensou Paulo. Mas não conseguia ficar preocupado – o mundo estava em paz, e tudo o que queria fazer era dormir um pouco.

Acordou com o estômago dando voltas, e uma imensa vontade de vomitar.

– Fica quieto mais um pouco.

Alguém estava falando com ele, mas sua cabeça era uma imensa confusão. Lembrava-se ainda do paraíso dourado, onde tudo era paz e tranqüilidade.

Tentou mover-se, e sentiu como se milhares de agulhas se cravassem em sua cabeça.

“Vou dormir de novo”, pensou. Mas não conseguia – as agulhas não se descravavam. O

estômago continuava dando voltas.

– Quero vomitar – disse.

Quando abriu os olhos, viu que estava sentado numa espécie de minimercado; várias geladeiras, com refrigerantes dentro, e prateleiras com comida. Olhou aquilo e sentiu mais enjôo. Então reparou, à sua frente, num homem que nunca vira antes.

Ele ajudou-o a levantar-se. Paulo percebeu que, além das agulhas imaginárias na cabeça, tinha também uma outra no braço. Só que esta era de verdade.

O homem pegou o soro preso na agulha e os dois caminharam até o banheiro. Ele vomitou um pouco de água, nada mais.

– O que está acontecendo? O que significa esta agulha?

Era a voz de Chris, falando em português. Voltou para o pequeno mercado, e viu que ela também estava sentada, com o soro injetado nas veias.

Paulo agora sentia-se um pouco melhor. Não precisava mais da ajuda do homem. Ajudou Chris a levantar-se, ir ao banheiro, e vomitar também.

– Vou levar seu carro, e pegar o meu – disse o estranho. – Deixo no mesmo lugar, com a chave na ignição. Peça uma carona para ir até lá.

Ele estava começando a se lembrar do que acontecera, mas o enjôo retornara e teve que vomitar de novo.

Quando voltou, o homem já havia saído. Eles então repararam que outra pessoa estava ali –

um rapaz, com seus vinte e poucos anos.

– Mais uma hora – disse o rapaz. – O soro acaba, e vocês podem ir embora.

– Que horas são?

O rapaz respondeu. Paulo fez um esforço para se levantar – tinha um encontro, e não queria falar de jeito algum.

– Preciso ver Took – falou para Chris.

– Sente-se – disse o rapaz. – Só quando o soro acabar.

O comentário era desnecessário. Ele não tinha força ou disposição para caminhar até a porta.

“Foi-se o encontro”, pensou. Mas, a esta altura, nada tinha muita importância. Quanto menos pensasse, melhor.

– Quinze minutos – disse Took. – Depois disso, vem a morte, e você nem percebe. Estavam de novo no velho trailer. Era a tarde do dia seguinte, e tudo em volta estava cor-derosa. Nada parecido com o deserto do dia anterior – dourado, de imensa paz, e vômitos, e enjôo. Há 24 horas não conseguiam dormir ou comer – vomitavam tudo que colocavam para dentro. Mas agora a sensação estranha estava passando.

– Ainda bem que o horizonte de vocês estava expandido – continuou o rapaz. – E que estavam pensando em anjos. Um anjo apareceu.

Era melhor dizer “a alma havia crescido”, pensou Paulo. Além disso, o sujeito que apareceu não era um anjo – tinha uma caminhonete velha, e falava inglês. Aquele garoto já estava começando a ver coisas.

– Vamos logo – disse Took, pedindo que Paulo ligasse o carro.

Sentou-se no banco dianteiro, sem a menor cerimônia. E Chris, blasfemando em português, foi para o banco de trás.