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Took começou a dar instruções – pegue este caminho aqui, siga para lá, ande rápido para que o carro refrigere bem, desligue o ar condicionado para não esquentar o motor. Várias vezes saíram das precárias estradas de terra e adentraram o deserto. Mas Took sabia tudo, não cometia erros como eles.

– O que houve ontem? – insistiu Chris pela centésima vez. Sabia que Took alimentava a expectativa; embora já tivesse visto seu anjo da guarda, agia como qualquer rapaz de sua idade.

– Insolação – respondeu ele finalmente. – Será que vocês nunca viram filme de deserto?

Claro que já. Homens sedentos, se arrastando pela areia em busca de um pouco de água.

– Nós não estávamos com sede. Os dois cantis estavam cheios de água.

– Não falo disso – cortou o americano. – Refiro-me às roupas.

As roupas! Os árabes com aquelas roupas longas, vários mantos – um por cima do outro. Sim, como fomos tão burros? Paulo já tinha escutado tanto sobre isso, já estivera em três outros desertos… e nunca sentira vontade de tirar a roupa. Mas ali, naquela manhã, depois da frustração do lago que não chegava nunca… “Como pude ter uma idéia tão imbecil?”, pensou.

– Quando vocês tiraram a roupa, a água do corpo começou a evaporar imediatamente. Não dá nem para suar por causa do clima completamente seco. Em quinze minutos, vocês já

estavam desidratados. Não existe sede nem nada – apenas um leve senso de desorientação.

– E o cansaço?

– O cansaço é a morte chegando.

“Não deu para notar que era a morte”, Chris disse para si mesma. Se algum dia precisasse escolher uma maneira suave de deixar este mundo, voltaria a andar nua pelo deserto.

– A grande maioria das pessoas que morrem no deserto, morrem com água no cantil. A desidratação é tão rápida que nos sentimos como quem bebeu uma garrafa inteira de uísque ou tomou um enorme comprimido de calmante.

Took pediu que, a partir de agora, bebessem água o tempo inteiro – mesmo sem sede, porque a água precisava estar dentro do corpo.

– Mas apareceu um anjo – concluiu ele.

Antes que Paulo pudesse dizer o que pensava a respeito, Took mandou que parassem perto de um morro.

– Vamos descer aqui, e fazer o resto do caminho a pé.

Começaram a andar por uma pequena trilha, que levava até o alto. Logo nos primeiros minutos, Took lembrou-se que esquecera a lanterna no carro. Voltou, pegou-a, e ficou sentado algum tempo no capô, olhando o vazio.

“Chris tem razão; a solidão faz mal às pessoas. Ele está se comportando de uma maneira estranha”, pensou Paulo enquanto olhava o rapaz sentado lá embaixo. Mas, segundos depois, ele já havia subido de novo o pequeno trecho que tinham caminhado, e passou a acompanhar os dois.

Em quarenta minutos, sem maiores dificuldades, estavam no topo do monte. Havia uma vegetação rala, e Took pediu que sentassem de frente para o norte. Sua atitude, muito expansiva, havia mudado – agora parecia mais concentrado e distante.

– Vocês vieram em busca de anjos – disse, sentando-se também ao lado deles.

– Eu vim – disse Paulo. – E sei que você conversou com um.

– Esqueça meu anjo. Muita gente, neste deserto, já conversou ou viu seu anjo. E também muita gente nas cidades, e nos mares, e nas montanhas.

Havia um certo tom de impaciência na voz dele.

– Pense no seu anjo da guarda – continuou. – Porque meu anjo está aqui, e eu posso vê-lo. Este é meu lugar sagrado.

Tanto Paulo quando Chris lembraram a primeira noite no deserto. E imaginaram de novo os seus anjos, com as roupas, e as asas.

– Tenham sempre um lugar sagrado. O meu já foi dentro de um pequeno apartamento, já foi uma praça em Los Angeles, e agora é aqui. Um canto sagrado abre uma porta para o céu, e o céu penetra.

Os dois ficaram olhando o lugar sagrado de Took: rochas, o solo duro, a vegetação rasteira. Talvez algumas cobras e coiotes passeassem de noite por ali.

Took parecia estar em transe.

– Foi aqui que consegui ver o meu anjo, embora soubesse que ele está em todos os lugares, que sua face é a face do deserto onde vivo, ou da cidade onde morei dezoito anos.

“Conversei com meu anjo porque tinha fé na existência dele. Porque tinha esperança no seu encontro. E porque o amava.”

Nenhum dos dois ousou perguntar qual havia sido a conversa. Took continuou:

– Todo mundo pode contatar quatro tipos de entidades no mundo invisíveclass="underline" os elementais, os espíritos desencarnados, os santos, e os anjos.

“Os elementais são as vibrações das coisas da natureza – do fogo, da terra, da água e do ar –

e nós os contatamos por meio do ritual. São forças puras – como os terremotos, os raios ou os vulcões. Porque precisamos entendê-los como ‘seres’, aparecem sob a forma de duendes, de fadas, de salamandras; mas tudo que o homem pode fazer é usar o poder dos elementais – jamais aprenderá qualquer coisa com eles”.

“Por que ele está dizendo isto?”, pensou Paulo. “Será que não se lembra que também sou um Mestre em magia?”

Took seguia sua explicação:

– Os espíritos desencarnados são aqueles que estão vagando entre uma vida e outra, e nós os contatamos por meio da mediunidade. Alguns são grandes mestres – mas tudo que eles ensinam nós podemos aprender na Terra, porque eles também aprenderam aqui. Melhor, então, deixá-los caminhar em direção ao próximo passo, olharmos mais nosso horizonte e procurar tirar daqui a sabedoria que eles tiraram.

“Paulo deve saber isso”, pensou Chris. “Ele está falando para mim.”

Sim, Took falava para aquela mulher – por causa dela estava ali. Nada tinha a ensinar a Paulo, vinte anos mais velho que ele, mais experiente, e que, se pensasse duas vezes, descobriria a forma de conversar com o anjo. Paulo era discípulo de J. – e como Took ouvia falar de J.! No primeiro encontro, tentou diversas maneiras de fazer o brasileiro falar, mas a mulher atrapalhara tudo. Não conseguiu saber as técnicas, os processos, os rituais que J. usava.

Aquele primeiro encontro o desapontara profundamente. Pensou que o brasileiro talvez estivesse usando o nome de J. sem que o Mestre soubesse. Ou, quem sabe, J. errara pela primeira vez na escolha do discípulo – e se fosse isso, em breve toda a Tradição iria descobrir. Mas, naquela noite do encontro, sonhou com seu anjo da guarda.

E seu anjo pediu que ele iniciasse a mulher no caminho da magia. Apenas iniciar: o marido faria o resto.

No sonho, ele argumentou que já havia ensinado o que era segunda mente e havia pedido que ela olhasse o horizonte. O anjo disse que prestasse atenção ao homem, mas que cuidasse da mulher. E

desapareceu.

Era treinado para ter disciplina. Estava, agora, fazendo o que o seu anjo pedira – e esperava que isto fosse visto lá em cima.

– Depois dos espíritos desencarnados – continuou ele –, aparecem os santos. Estes são os verdadeiros Mestres. Viveram conosco algum dia, e estão agora próximos da luz. O grande ensinamento dos santos são suas vidas aqui na Terra. Ali está tudo que precisamos saber, basta imitá-los.

– E como invocamos os santos? – perguntou Chris.

– Pela oração – respondeu Paulo, cortando a palavra de Took. Não estava com ciúmes –

embora fosse claro para ele que o americano queria brilhar para Chris.

“Ele respeita a Tradição. Vai usar minha mulher para me ensinar. Mas por que está sendo tão primário, repetindo coisas que já sei?”, pensou.

– Invocamos o santos pela oração constante – Paulo continuou a falar. – E quando eles estão perto, tudo se transforma. Os milagres acontecem.

Took notou o tom agressivo do brasileiro. Mas não falaria sobre o sonho com o anjo, não devia satisfações a ninguém.

– Finalmente – Took pegou de novo a palavra –, existem os anjos. Talvez o brasileiro não soubesse mesmo esta parte, embora parecesse conhecer um bocado de outros assuntos. Took fez uma longa pausa. Ficou em silêncio, rezou baixinho, lembrou-se do seu anjo, torceu para que ele estivesse escutando cada palavra. E pediu para ser claro porque – ah, Deus! – era muito, muito difícil explicar.